Estrela da Manhã
António Gedeão - Poemas

  Imagem do Manuscrito

"Numa qualquer manhã, um qualquer ser,
vindo de qualquer pai,
acorda e vai.


Vai.


Como se cumprisse um dever.


Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;
nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.
E em seu impessoal desejo latejam todos os restos
de quantos desejos ficaram antes por desejar.


Abre os olhos e vai.


Vai descobrir as velas dos moinhos
e as rodas que os eixos movem,
o tear que tece o linho,
a espuma roxa dos vinhos,
incêncio na face jovem.


Cego, vê, de olhos abertos.
Sozinho, a multidão vai com ele.
Bagas de instintos despertos
ressuma-lhe à flor da pele.


Vai, belo monstro.
Arranca
as florestas com os teus dentes.
Imprime na areia branca
teus voluntariosos pés incandescentes.


Vai


Segue o teu meridiano, esse,
o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;
o plano de barro que nunca endurece,
onde a memória da espécie
grava os sonos imortais.


Vai


Lábios húmidos do amor da manhã,
polpas de cereja.
Desdobra-te e beija
em ti mesmo a carne sã.


Vai


À tua cega passagem
a convulsão da folhagem
diz aos ecos
«tem que ser».


O mar que rola e se agita,
toda a música infinita,
tudo grita
«tem que ser».


Cerra os dentes, alma aflita.
Tudo grita
«Tem que ser»."

 

António Gedeão, in Movimento Perpétuo