"O efeito de choque que a poesia de António Gedeão produziu quando da sua estreia derivava em grande parte da sua interpretação da física, da química e da bilogia do mundo, associada a uma reflexão filosófica, patente em muitos dos seus títulos e a que não eram estranhos um certo humorismo suave e uma clara esperança, oferecida como estímulo , como ânsia de transfomação e também como lenitivo, esperança que mais tarde ele nos dirá ter sido então «necessária» (era o tempo do fascismo e da escrita como missão). Tanto a arte como a descoberta científica e o trabalho humano fixam a sua atenção e lhe merecem aplauso. Antes de José Saramago ter escrito as suas páginas de homenagem aos trabalhadores que ergueram pedra a pedra o mosteiro de Mafra, no Memorial do Convento, já António Gedeão nos dera o Poema da Pedra Lioz, mencionando logo de entrada os nomes de « Álvaro Góis / Rui Mamede / filhos de António Brandão / naturais de Cantanhede; / pedreiros de profissão, / de sombriascataduras.» Nestes versos se projectam o talento e o esforço desses artesãos quase anónimos, lavrando o calcário sob a abóbada românica. Cântico ao trabalho de onde a beleza vai brotar e projectar-se no tempo, nesse tempo para além da morte que iguala os nobres e os plebeus. A participação do poeta quando Gedeão, quase ironicamente se assume como tal, no trabalho seu e dos outros, já que os outros estão em nós, como nós neles, segundo a ética e a filosofia de vida do autor de O Texto Poético como Documento Social, exprime-se como límpido amor e solidariedade e ao mesmo tempo com a sua visão, racional, do cientista, em «Suspensão Coloidal». A noção subtil e humilde que António Gedeão, antes da torização de Roland Barthes, tem da distanciação entre o homem, o escritor, o enunciador e o texto estão bem marcados no final deste poema. A solidariedade social, que Gedeão soube exprimir - e era hora de o fazer - com tão pouco ruído, mas com tanta eficácia e sem demagogia, brilha, em sua luz negra, muito baixa, carregada de comoção e tristeza, na célebre litania «Calçada da Carriche», que ficou no ouvido de Lisboa. Há algumas pontes de contacto entre Raul Brandão, esse antepassado de todos nós os que sentimos a dor dos pisados, dos humilhados, dos sem abrigo nem reconhecimento cívico, e dois grandes poets de ontem e hoje, que sonham em comunhão com os outros: José Gomes Ferreira a António Gedeão. E ambos, no entanto, conheceram o travor da solidão, mesmo na fraternidade e na intimidade do amor. Veja-se o hiperlúcido e resignado «Poema do Homem Só», de Gedeão. Na poesia de António Gedeão, um sopro de modernidade combina-se harmoniosamente com a maciez e a harmonia da tradição lírica. No entanto, ele será tudo menos um poeta tradicional. Jorge de Sena sublinha bem no seu já referido prefácio às Poesias Completas a nítida viragem que António Gedeão realiza, opondo frontalmete à concepção fisica pré-galilaica, disseminada no imaginário dos poetas anteriores a ele, os pressupostos científicos do nosso tempo, que vertebram a poesia e a iluminam. Jorge de Sena define mesmo António Gedeão como um «poeta extremamente típico de perplexidadede um tempo socialmente suspenso». É que nos seus livros equilibram-se as afirmações e as interrogações, quer se trate de valores científicos, sociais, humanos ou estéticos. Neste último aspecto, o de uma estílistica própria, há que atentar na importância artística das repetições noritmo frásico do discurso de Gedeão. Também o uso da terminologia científica, combinada por vezes em termos vulgares, quotidianos, o gosto da precisão unido ao da analogia se notam em tantos poemas, onde alguma vez ressoam ecos de pessoa ortónimo; « Chamei o meu ser que pensa / para ralhar com o que sente / Sempre que os ponho em presença / sorrio,piedosamente.» O sentido da história é uma constante da poesia de Gedeão: «O escopro de milhões de anos arrancou-te à pedra bruta, modelou-te em pormenor. O sangue de milhões de homens, em ti, a ferver, se escuta. A harmonia dos teus gestos foi revolta, treva e luta. O perfume doteu corpo foi temperado em suor.» Mas há sempre um grama de cepticismo na esperança de Gedeão, quando ele aponta para o progresso científico e técnico da Humanidade e até para a presença muito forte da arte num estádio superior de civilização. Gedeão desconfa do homem e tem razões para isso. Logo no seu primeiro poema, o Homem é um «animal aflito», isto é, retituído à sua efectiva animalidade, mas é também «universo em expansão, ou seja criatura em desenvolvimento», «desde mais infinito a menos infinito», o que supõe a hesitação sobre o desfecho da luta que o homem trava com o tempo. Arte sempre representacional, a poesia de António Gedeão é um discurso essencialmente voltado para o Outro. Embora nele subsistam (e já tivémos ocasião de o ver) marcas individualistas, que por vezes ele reivindica, o enunciador nunca aprece como aquele eu absoluto que rejeita a sociedade e a razão, senão que assume justamente essa razão, como consciência colectiva em si mesmo. (…) Em «Autobiografia», eis-nos perante a honesta piedade e a consciência dramática da dificuldade de intervir, de entrar plenamente no Outro, para além do contacto físico. No entanto, a fusão do sujeito com a natureza, numa espécie de religião sem deus, aparece-nos em diversos poemas. Tal não o impede de outras vezes sentir a vida como um campode concentração. Desta dialéctica nasce precisamente a autenticidade e a riqueza interior da poesia de Gedeão. (…) Não temos o direito de perturbar a sua paz, solicitando-lhe que volte, que torne a dizer-nos do sonho e da esperança. Mas outras vozes virão talvez, na mesma linha, trazer-nos a luz da ciência e a da bondade, virão bater-se serenamente pela vida contra a morte, pela liberdade contra a opressão, pela inteligência generosa contra o bezerro de ouro e tudo o que gera ou acrescente a dor dos outros, sentida como a nossa."
Urbano Tavares Rodrigues
TAVARES RODRIGUES, Urbano, "Decifrados do mundo, Alquimista do sonho", in Jornal de Letras, Lisboa, 26 de Fevereiro, 1997
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