Jacinto Prado Coelho PDF Imprimir e-mail

 

Jacinto Prado Coelho "Assim, em António Gedeão, poeta do homem interior, ser paradoxal, tudo e nada ("Eu sei que as dimensões impiedosas da vida/ ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,/ nesta insignificância, gratuita e desvalida,/Universo sou eu, com nebulosas e tudo"), em António Gedeão, ao individualismo do enclausurado no seu próprio mundo articula-se, pela antítese irónica, o sentimento da solidariedade, e daí o espinho do dever não cumprido ("Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal"). Sem entusiasmo messiânico, sem certeza programática, mas grave e desencantado (duma gravidade que dá especial sentido ao humor lúdico de muitos versos), o poeta sofre e canta a vida nas suas múltiplas dimensões, homem sozinho pobre por não ter a quem dar, homem vítima do absurdo, irmão de outros homens.
 António Gedeão surgiu na poesia de hoje como um isolado, liberto de tendências de escola. Pela capacidade inventiva, pelo muito hábil aproveitamento das virtualidades fonético-estilísticas das palavras, mas também pelo talento da síntese e pela clareza, liga-se aos nossos parnasianos, evoca em especial o senso plástico dum Cesário Verde — o dos alexandrinos "originais e exactos"—, ou o subtil humorismo de um Feijó. Esses dotes de expressão e o gosto aristocrático das formas antigas, como o vilancete, e populares, como a quadra e o romance, poderiam levar-nos ainda a aproximá-lo dum Afonso Lopes Vieira. Mas logo esta aproximação torna evidente que António Gedeão, pelos temas e pelo estilo, é muito mais moderno: pertence, visivelmente, a uma época marcada pela presença de Fernando Pessoa e dos modernistas brasileiros. No seu cosmo poético, formalmente tão rigoroso, penetram, com um vocabulário em que sobressaem, pela novidade, tecnicismos científicos escolhidos pela eufonia e pelo colorido, imagens e conceitos, interrogações, perplexidades, o desengano, os antagonismos, a náusea que são o pão e as lágrimas do nosso dia-a-dia. Por mim, não julgo incompatíveis poesia e literatura, poesia e clareza da estilo; aceito António Gedeão como expoente de modernidade que se mantém fiel, por independência de gosto e formação humanística, à lição do classicismo."


 In PRADO COELHO, Jacinto, Ao Contrário de Penélope, 1ª edição, s.l., Livraria Bertrand, 1976