Por uma linha recta mais suposta que o areal e o mar |
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António Gedeão escrevia como quem vai fazendo o diário compassado de uma perplexidade elementar, ou como quem tacteia o mundo e o interroga:
Só eles sabem sob quanta solidão e quanta melancolia, por quanta resignação Esta é desse ponto de vista uma atitude eminentemente moral, se bem que não propriamente moralista ou de intuitos moralizantes, i. é, impõe-se menos como preceito apriorístico de conduta que como preceito, ou princípio, de dignidade humana (eu ia a dizer, hoje, de sobrevivência dessa dignidade) decorrente daquela sistemática atenção ao mundo circundante, ao mundo da razão e ao mundo dos sentidos. Numa espécie de amorosa aplicação. E decorrente também da suspeita metódica (quase pessoana, não fosse a peculiar capacidade de António Gedeão amaciar e em todos os sentidos harmonizar tudo o que nele porventura haja de pessoano) do non-sense de um e outro. Ainda que muitas vezes calada, ainda que nem sempre confessa. Em todo o caso aqui ou ali insinuada:
Ostinato Rigore: curioso que neste contexto um título de Eugénio de Andrade – e com ele a grande referência da cultura humanista que é Leonardo da Vinci – inesperadamente ocorra. E no entanto, o sentido que isso tem. Quando António Gedeão publicou o seu primeiro livro de poemas, Movimento Perpétuo, 1956, e quando Eugénio de Andrade publicou Ostinato Rigore, 1964, já não era tanto aquela «pura», fria lucidez pessoana que ocupava a consciência e o gosto poético da geração a que ambos literariamente pertencem, se bem que biologicamente separados por dezassete anos; sequer o do não menos pungente, embora bem mais musical, confessionalismo emocional das tensões íntimas de um Mário de Sá Carneiro, aquele «Quase» («Um pouco mais de sol – eu era brasa | Um pouco mais de azul – eu era além») e aquela Dispersão. Resolvida que fora, formalmente, a subversão de valores literários e poéticos em boa hora praticada pela geração de Orpheu, no sentido de uma adequação da escrita à própria verdade dos seus múltiplos sentidos, e consolidada, até em termos teóricos, pela da presença; resolvidas que haviam sido, assim, as perplexidades do movimento modernista; e saudavelmente ultrapassados os limites da deriva neo-realista dos anos quarenta – era agora o tempo em que os poetas organizavam versos como quem plasmava sentidos e saberes elementares e como quem, já com a consciência do peso de cada palavra, nelas procurava acima de tudo uma depuração. A delas mesmas e aquela que advinha da sua articulação na frase, ou no verso, e nos seus ritmos. E eram outras as ambivalências que os moviam, ou, se não deixavam de ser as mesmas na universalidade dos temas (não tanto na dos motivos), era outra a forma de com elas se confrontarem. Fosse, como foi o caso de Eugénio de Andrade, para cantar a sensualidade das nascentes, uma água, uma transparência, o fluir dos rios, os sinais do amor ou os meandros da sua afirmação, o romper das manhãs ou o encontro dos corpos; fosse, como António Gedeão, de uma maneira mais insinuada, mais sugerida do que exposta, mais implícita do que explícita, para a tudo isso devolver uma razão de ser e um sentido. Mais: para lhes descobrir – e pôr subtilmente a descoberto – uma inteligência dos sentidos, uma serenidade. Foi essa ainda a década dos Cadernos de Poesia, da Távola Redonda e da Árvore, a da maior afirmação de Ruy Cinatti, de Sophia, de Jorge de Sena mesmo por entre a truculência, nem sempre assim tão subtil, de muitos dos seus versos; a de Ramos Rosa e de David Mourão-Ferreira. E incluiríamos aí, nessa década de um lirismo tão decantado, também Alexandre O’ Neill e João Rui de Sousa, não fosse a muito individual, às vezes quase trágica ainda quando terna, força da veia satírica de um, e a circunstância de ser já de sessenta a estreia poética do outro. A todos une uma poética da imanência e a busca de uma unidade elementar, onde a palavra com as suas diversas componentes linguísticas assume finalmente o valor plástico e musical que a modernidade lhe atribui na sua função de comunicação, com a carga simbólica e expressiva que é sua e com o melhor da sua vocação retórica, mas à margem de uma qualquer missão social que a queira com maior ou menor legitimidade justificar ou a que o seu autor a queira vincular, mais ainda à margem das perversões de ordem religiosa, ideológica ou política que tantas vezes se lhe colam. Não deixa em todo o caso a poesia de António Gedeão de corresponder, creio que também para além dos limites de quaisquer fronteiras nacionais, a uma persistente vocação humana e humanística, aí cabendo uma espécie de melodia muito antiga, um qualquer, indefinido eco de um ritmo manso e de uma cadência – uma música que nos canta de muito longe, quem sabe de que perdida ou difusa memória do nosso imaginário. Julgo ter sido no desejo de invocação de uma função eminentemente universal, humana e unitária da música na sua (essa sim: íntima) vinculação à poesia, i. é, no sentido filológico mais remoto do termo e enquanto função de uma linguagem, nesse sentido mais próximo de uma vocação do que de uma missão, que David escreveu um dia uma Ode à Música (1980), para perto do fim concluir: «Só tu a cada instante nos declaras | que renegas a voz de quem divide | […] Que és do próprio Universo o que o sublima [...]». Admito que, independentemente de outros aspectos da sua indiscutível qualidade formal, ou das boas causas que, quer se queira quer não, serviu, isso possa explicar em parte a popularidade que ganharam alguns dos poemas de António Gedeão, através da sua harmonização e divulgação pelo canto, nomeadamente o canto de protesto nos anos sessenta e setenta. Admito isso quanto à relativa popularidade e à divulgação da sua mensagem humana, que não tanto a uma significativa motivação para o contacto directo com os seus livros (por razões de ordem histórica e social que não vêm aqui ao caso, era já então uma elite que tinha o hábito de ler, embora creia que se lia então mais poesia do que hoje). Para quem não tenha tido o privilégio de conhecer pessoalmente Rómulo de Carvalho ou ser seu aluno, essa motivação para uma abordagem e um conhecimento mais sério da sua obra poética terá vindo, virá sempre, só pode vir acima de tudo da sua própria leitura e, nela, de uma atenta, necessariamente aplicada, disponibilidade para o seu canto íntimo – justamente aquele que advem da música dos seus versos, da articulação dos seus ritmos e dos seus sentidos mais antigos, da sua ressonância profundamente humana e do seu significado universal. Sempre «em procura da límpida medida». E terá sido em boa parte isso o que, de simultaneamente tão moderno e tão intemporal, lhe deu contornos tão Não por acaso, vários daqueles poetas seus contemporâneos lhe dedicaram atentos ensaios. Mas deve desta plêiade (ou chamemos-lhe antes, na presente circunstância, constelação, que em linguagem da Astronomia lhe é sinónimo) destacar-se Jorge de Sena: porque o já histórico Prefácio, de 1964, que Sena escreveu para as primeiras edições das Poesias Completas de Gedeão, seguido de um Post Scriptum de 1968, aparece reproduzido no volume que agora reúne todos os seus textos, alguns inéditos, e não só de poesia (António Gedeão – Obra Completa. Lisboa: Relógio de Água, 2004); porque no mesmo volume se incluem as cartas que, por causa daquelas primeiras publicações e na sequência da revelação da sua identidade, Rómulo de Carvalho lhe dirigiu, i. é, a parte que lhe coube da correspondência que trocaram (entre 1958 e 1977), antecedida, aliás, de umas«Breves Palavras» deste sobre as relações entre ambos; mas acima de tudo pelo muito que esses documentos iluminam a abordagem da poesia de Gedeão e pelo muito que dão a conhecer das afinidades que sob um trato um tanto cerimonioso ligavam dois grandes poetas e dois grandes homens de tão diversa personalidade. Sub-intitulado «Esboço de Análise Objectiva», aquele Prefácio sobre «A Poesia São parcas e são poucas as cartas que ambos trocaram, apenas uma meia dúzia. Mas são um notável, porque hoje raro, exemplo de efectivo testemunho literário a justificar e a legitimar a sua publicação. Para além daquelas em que, a pretexto de lha agradecer, comenta uma ou outra obra de Jorge de Sena – e também aí, naturalmente, denuncia a sua própria atitude literária – refiro-me em particular, porque é de Gedeão que no presente catálogo se trata, às datadas de 9 de Dezembro de 1958, de 29 de Dezembro de 1963 e de 24 de Março de 1974. Rómulo de Carvalho escreveu-lhe a carta de Dezembro de 1958 a propósito da inclusão de António Gedeão na antologia daquela que será sempre uma obra de referência fundamental para qualquer estudioso cuidado da literatura portuguesa: as séries de Líricas Portuguesas, primeiro editadas pela Portugália Editora, sendo depois os dois volumes da 3.ª série (1958 e 1972) – justamente a série que é da responsabilidade de Jorge de Sena e por ele prefaciada – reeditados em 1983 e 1984 pelas Edições 70. Conforme modelo da colecção a antologia é precedida de uma apresentação do poeta antologiado – essa, sim, em informação e síntese crítica, do melhor que tem sido feito pela sua divulgação. Não resisto a transcrever literalmente algumas passagens desta carta:
Que me seja desculpado o abuso, se o for, da interpretação, mas alguma coisa me diz que a distância a que delicadamente Gedeão se reporta não é apenas a do tempo que separa antigos e modernos. Aliás, reconhece mais adiante na mesma carta:
Apetece corrigir um pouco a formulação para dizermos: terá sido por sincero didactismo que António Gedeão insistiu em formas clássicas de poesia, mas não o terá sido com menos amor dessas formas clássicas; nem, nesse sentido, e só nele, com menos amor da tradição do que da modernidade do seu tempo. Penso sobretudo que a poesia de António Gedeão soube, com a naturalidade e a serenidade de que só os melhores são capazes, num esforço de depuração e equilíbrio formal que tem de corresponder antes do mais a uma grande autovigilância da própria sensibilidade, realizar uma inteligentíssima e muito culta, também nesse sentido muito educada, síntese do clássico e do moderno. Pela muita humanidade que ela contém. E pela terna ironia que é tão sua, quase pueril na verdade dos seus termos. Não será despropositado mencionar aqui, a par dos inúmeros títulos de divulgação científica e histórica publicados em vida no âmbito das suas preocupações de ordem pedagógica, as palavras que do Autor os herdeiros evocam no prefácio ao enternecedor livro póstumo intitulado As Origens de Portugal – História contada a uma criança, quem sabe se na secreta convicção ou pelo menos na pequena esperança de que não tenha sido esse, discretamente, um dos seus menores legados:
Não conheço, entre médicos, matemáticos e engenheiros, discípulo de Rómulo E quanto a nós, na evocação e na procura da afabilidade dos nossos vivos, dos nossos poetas e dos nossos mortos, o legado de vida que a nós mesmos devolvemos: in memoriam. Que concerto humano é este hoje, em que apenas uma dispersão nos pontua Nos últimos anos, por entre o barulho e a patologia do nosso quotidiano, neste
Desde então, é outra a frase que a espaços, compassadamente, me ocorre e E é aí que cabe esta outra passagem de uma carta a Jorge de Sena, justamente a já referida carta de 24 de Março de 1974:
Há tão boas ressonâncias de outros clássicos e de outros modernos em Gedeão. Não são poucas, nem inferiores ou menos significativas, as camonianas, de que é supremo exemplo o «Soneto» dedicado Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade. Mas é ainda uma vez de ressonância e rigorosa articulação seniana a voz, talvez antiga, talvez clássica na sua contensão, mas não distante, é antes como uma velha e boa melodia, sensualíssima, aquela que nos chega do seu
Só quem, como António Gedeão, se aventura e obstina a sondar a respiração dos dias lhes conhece os cambiantes de luz e som, as surpresas da sua harmonia interna, o rigor de uma geometria. Como quem até ao fim persiste amavelmente em dizer: no sem-sentido da vida o sentido que ela tem. |
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