A literatura infanto-juvenil de Rómulo de Carvalho |
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Estudos - Estudos sobre o autor | |||
Professor, metodólogo, autor de compêndios dedicados à Física, à Química eàs Ciências Naturais, pedagogo emérito, não admira que o escritor pretendesse transpor para fora do âmbito meramente escolar a divulgação de temas relacionados com a ciência e a tecnologia, que tão bem dominava e para ele constituíam uma rigorosa paixão. A tradição deste género literário entre nós iniciara-se na primeira década do século XX, com a publicação de Histórias de animais, sua vida, costumes, anedoctas, fábulas, etc.– Noções amenas de zoologia para crianças de autoria de José Quintino Travassos (1909).
Quase simultaneamente, João da Mota Prego, agrónomo, enveredou pela elaboração de livros romanceados que revelavam aos mais novos a realidade da vida agrícola, da produção pecuária e assuntos afins com uma sucessão de livros como O pomar do Adrião, A leitaria da Rosalina, A lagoa de Donim: piscicultura, A horta do Tomé, Os netos do Nicolau: sericultura. Fernand´Almiro inaugurou, em 1942, a «Biblioteca dos meus filhos» com a História da aviação contada às crianças. Duas outras figuras,muito distintas, vieram a conquistar visibilidade no campo da divulgação para jovens. Agostinho da Silva, notabilizado fundamentalmente Paralelamente começou a impor-se Adolfo Simões Müller, profissional da escrita para os mais novos, que na colecção «Gente Grande para Gente Pequena», destinada a jovens entre os 12 e os 16 anos, apresentou «o romance dos homens que, pela inteligência e pelo coração, pelo sonho e pelo esforço, contribuíram para o bem da humanidade e para tornar a Terra maior». Entre as múltiplas biografias sobressaem as de Madame Curie (A pedra mágica e a princesinha doente) e de Edison (O homem das mil invenções), editadas em 1945 e 1947. Foi nesta tradição que o emérito docente do Liceu Pedro Nunes se veio a inserir, traçando embora rotas muito pessoais. Trouxe para a liça a cultura científica, abordada por um cientista, e o sonho de despertar a curiosidade, o interesse activo dos estudantes por temas até então nunca abordados entre nós fora do contexto escolar. Rómulo de Carvalho iniciou-se prematuramente nas áreas em que se havia de evidenciar, escrevendo o primeiro poema aos cinco anos e estreando-se como professor a partir dos oito, idade em que terminou a instrução primária, com uma autorização especial do Ministério da Educação. Impedido de entrar de imediato no ensino secundário, manteve-se no colégio onde estudara, ajudando os professores a dar aulas aos alunos mais atrasados. Ele próprio confessou o seu gosto infantil pela exposição: «Lembro-me que quando era criança estudava as lições a expor, a falar com as portas, as paredes, as janelas, a repetir o que aprendia como se estivesse a ensinar aos objectos».
Na mesma entrevista , narrou como foi prosseguindo:
Embora se sentisse igualmente vocacionado para as Letras, a que obteve aliás notas mais elevadas, decidiu-se pelas Ciências, facto de que nunca veio a arrepender-se. A sua obra dedicada aos mais novos, para além dos manuais, é essencialmente constituída por duas importantes colecções que vieram a marcar gerações de jovens e comprovadamente aguçaram o espírito de futuros investigadores. Em 1952 iniciou, na editora Atlântida, de Coimbra, a colecção «Ciência para gente nova», na qual assinou, ao longo de uma década, todos os títulos, com excepção do 6.º, a História do Sangue de Ilídio Sardoeira. Passamos a enumerá-los:
Era, à época, a única colectânea portuguesa de divulgação científica para crianças e, até hoje, nenhum amplo projecto similar veio a lume.
Estes livros são profusamente ilustrados com gravuras antigas, que contribuem para dar uma perspectiva histórica, modelos, gráficos, desenhos actuais que têm em vista a figuração bem explícita de objectos ou experiências. Um deles, a História dos Isótopos, apresenta uma capa de António Gedeão, alter ego do professor que, além de poeta, também como artista plástico se expressava. Se o volume atrás referido se reveste já de certa complexidade, os três primeiros vão ao encontro de interesses bem elementares de crianças e utilizam uma linguagem perfeitamente adequada à pré-adolescência. A ciência foi a sua religião, considerando que a manipulação pelo homem de fenómenos físicos produz verdadeiros, insofismáveis milagres, a que podemos assistir, em que podemos participar, como numa aventura. Senão, vejamos o que afirmou na História da Fotografia:
Aguçou o gosto pela observação, espicaçou o desejo de saber latente em todas as crianças, incentivando a que, da simples, estática observação, evoluíssem para a fase das interrogações, procurando a explicação das coisas, pois considerava essa a base do espírito científico. Não se limitou também à apresentação de problemas científicos e soluções tecnológicas, optando por contar, paralelamente, histórias, factos curiosos, até anedotas. Revelou biografias que constituem marcos da ciência e da humanidade.Os «Cadernos de Iniciação Científica», publicados pela Sá da Costa, entre 1979 e 1985, são ainda mais numerosos, incluindo os seguintes volumes breves, que não excedem uma dúzia e meia de páginas:
O texto de apresentação da série expressamente os destinou a jovens estudantes dos 9 aos 15 anos, afirmação que em volumes posteriores deixou de ocorrer, talvez por autor ou editor terem concluído que seria optimista, mas pouco razoável, a expectativa de serem lidos por garotos acabados de sair do primeiro ciclo do ensino básico:
No volume sobre electrónica abordou a figura incontornável de Edison, formulando, a propósito, a distinção fundamental entre homem de ciência e inventor:
Concluiu que o sistema não era de aconselhar:
Ao debruçar-se sobre a natureza e a ciência, não podia deixar de se impressionar com a sua beleza, tal como Fernando Pessoa (pela voz de Álvaro de Campos) ao assegurar que «O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso». Assim, no volume 5, sobre estrutura cristalina, invocou reminiscências literárias de Os Lusíadas, em que Camões descreveu a sala do Olimpo, com:
Patenteou aos jovens que não é necessário ter um laboratório para fazer experiências científicas:
Se foram as duas colecções de divulgação científica atrás referidas que o tornaram um autor incontornável no campo da literatura infanto-juvenil, não podemos no entanto esquecer duas outras obras, de características completamente diferentes, uma delas escrita nos inícios da década de 40 e que só postumamente veio a público e outra, em verso, firmada por António Gedeão, que saiu em 1981. As origens de Portugal – História contada a uma criança são um grosso volume manuscrito, magnificamente ilustrado, destinado à leitura e partilha íntima com seu filho, então com sete anos. Nunca pretendeu o autor publicá-lo, mas em boa hora a Fundação Calouste Gulbenkian no-lo deu a conhecer em 1998, numa edição facsimilada. Aposta na relação directa, coloquial, entre o escritor e o leitor/ouvinte, funcionando, de certo modo, como uma conversa, com todas as suas derivações. Apela para uma atenção activa, esperando interrogações ou solicitando respostas de quem, pela primeira vez, se defronta com os prelúdios da nossa história.
Seguro da importância da ilustração apelativa, colorida para a faixa etária a que se dirigia, elaborou uma obra exuberante, em que o desenho se intercala no texto, oscilando entre a máxima exactidão científica e o humor, recorrendo inclusivamente a esquemas próximos da banda desenhada. A ilustração é o complemento indispensável da narrativa, bem como das diversas explicações que a acompanham, que, de outra forma, poderia tornar-se demasiado abstracta. Por isso não hesitou, em determinadas passagens, em aconselhar que o melhor era ver o «bonequinho». Para a maioria das crianças a proto-história de Portugal e os primeiros anos da nacionalidade são períodos dificilmente assimiláveis, pelos quais os miúdos passam como cão sobre vinha vindimada, desinteressados de povos desconhecidos que se sucedem a outros igualmente desconhecidos, que viveram em terras com nomes caídos em desuso. Não possuindo uma noção do tempo histórico, as datas que os fazem fixar não têm sentido e guardam muitas vezes desse período apenas uma visão turva, semeada de batalhas e conquistas. Pois Rómulo de Carvalho entrou, sem reservas, no mundo das vivências infantis. Ao falar das lutas entre cristãos e sarracenos, sintetizava assim a atitude dos guerreiros do norte: «atiraram-se aos mouros como tu costumas atirar-te aos doces. Foi o que se chama uma limpeza». O que de mais importante e original se me afigura nesta abordagem histórica é a preocupação da exactidão, da verdade, da imparcialidade, não compactuando com os modelos então em voga no Estado Novo (e não só), sempre prontos a omitirem, deformarem, agigantarem a realidade, transformando os relatos históricos para crianças em narrativas heróicas, gloriosas. Ao invés, incentiva o sentido crítico e nomeadamente ético, em relação a personagens e factos, o respeito pela liberdade de consciência de quem professa uma religião, seja ela qual for. Homem de formação científica arreigada, insistiu em desmitificar fantasias e patranhas enganadoras que os adultos têm por hábito impingir aos garotos:
O livro, invulgarmente extenso para um período que termina com D. Sancho I, suscita muitas abordagens laterais, a propósito de ensinamentos básicos de geografia, ciências naturais, cultura geral, indispensáveis à compreensão da história que, à época, era na escola papagueada como um elenco de reis com seus cognomes, batalhas com sua cronologia, destinando-se a criar na mocidade portuguesa uma visão patrioteira. Rómulo de Carvalho deteve-se na vida quotidiana dos povos que habitaram a Península, dando a conhecer usos e costumes:
E explicou, tal como explicou o que é o cristianismo, o que são bibliotecas, pederneiras, etc., etc., aconselhando as crianças a fazerem com os pais a experiência de atearem fogo como os homens primitivos. Descreveu pormenorizadamente um castelo, visto estas fortificações fazerem parte do imaginário infantil e serem, simultaneamente, construções vitais para o período em estudo, mas não o descreveu apenas como baluarte militar, focou a sua função na vida social envolvente. Novidade para a época, introduziu o livro-brinquedo:
A linguagem é super coloquial. Nenhum escritor português utilizara expressões como a que passo a citar:
Rómulo de Carvalho que, aos dez anos, se tinha proposto continuar Os Lusíadas, tendo publicado algumas estrofes no Notícias de Évora, não deixou de aludir à poesia na obra que temos vindo a comentar:
Interpretado por companhias profissionais e amadoras para crianças (a partir dos 8 anos, segundo a apresentação do texto), tem sido representado em ateliês científicos como os que se realizam no Pavilhão do Conhecimento, no âmbito da rede Ciência Viva. Interessado na cultura popular e tradições que sobejamente veiculara na sua obra sobre as origens de Portugal sob a forma de lengalengas e rifões, apresentou inicialmente a lenda, segundo a qual as manchas da Lua são a figura de um camponês com um molhe de lenha às costas, que o Senhor do Mundo para o nosso satélite desterrara pelo pecado de trabalhar ao domingo. A vida atribulada, a miséria dum desgraçado sem eira nem beira faz-nos recordar alguns dos poemas para adultos que exprimem as suas preocupações com injustiças sociais e a prepotência dos mais poderosos:
Gedeão, atento ao fascínio que as narrativas fabulosas podem exercer sobre imaginações férteis ou incautas, dando lugar a crendices, não se poupou ao cuidado de alertar para a sua inadequação à verdade. Por isso a narradora desta peça esclarece:
À falsidade da lenda junta-se a ignorância dos populares sobre a origem das máculas lunares, que vem a ser esclarecida por um astrónomo que, com um tripé mais um canudo, apresenta a realidade ampliada por lentes telescópicas.
Às curiosas interrogações dos populares
o cientista forneceu respostas seguras, explicando o poético luar como um simples fenómeno natural e enaltecendo as viagens espaciais que levaram o Homem até esse planeta. Exímio fotógrafo, Gedeão optou pelo recurso à projecção de imagens, que têm um impacto espectacular, e fez mover em cena os personagens que representam o Sol, a Terra e a Lua, conseguindo, através de um jogo de luzes, dar ao vestido rodado de uma rapariga aspectos semelhantes aos das fases do nosso satélite.
Sempre rigorosos, Rómulo de Carvalho ou António Gedeão, não deixaram nunca de frisar, como no poema Pedra Filosofal , a importância do sonho como alavanca para o progresso individual e da humanidade.
Foi esse sonho que exaltou nas biografias de cientistas, inventores, homens de engenho. Que leitor da História dos balões se não recorda do pequeno Santos-Dumont, inconformado com o facto de os companheiros de brincadeira não aceitarem que os homens podiam voar? Foi o impulso desse desejo que o fez, em adulto, ganhar asas. Ao ler os impressivos testemunhos de quantos se deixaram seduzir, nos verdes anos, pela capacidade ímpar de Rómulo de Carvalho de ensinar, no laboratório e nos livros, considero que lhe devemos dirigir um agradecimento semelhante ao que ele próprio formula a um dos mais famosos pensadores e divulgadores da ciência:
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