Rómulo de Carvalho, historiador da educação PDF Imprimir e-mail
Estudos - Estudos sobre o autor

 

 Rogério Fernandes

 Rogério Fernandes


Licenciado em Ciências Físico-Químicas, professor do ensino liceal e mais tarde metodólogo do mesmo grau de ensino, além de poeta sob o pseudónimo de António Gedeão, Rómulo de Carvalho foi uma das personalidades mais notáveis no campo da cultura portuguesa. A sua obra como historiador da Ciência e historiador da Educação em Portugal é talvez a mais importante de quantas se produziram no nosso país.
Como transitou Rómulo de Carvalho do ensino de uma disciplina experimental
para a prática das ciências historiográficas? Tal é a interrogação que nos acode perante a diversidade de linhas de acção que manteve ao longo da vida.
Rómulo de Carvalho antecipa-se à nossa pergunta, esclarecendo nas páginas iniciais da História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (Coimbra, Atlântida-Livraria Editora, 1959), os motivos e circunstâncias desse trânsito que já abrangia a publicação de alguns dos seus melhores trabalhos: A pretensa descoberta da lei das acções magnéticas, por Dalla Bella, em 1781, na Universidade de Coimbra, 1954; Portugal nas «Philosophical Transactions», nos séculos XVII e XVIII, 1956 e Joaquim José dos Reis, construtor das máquinas de Física do Museu Pombalino da Universidade de Coimbra, 1958. Se é certo que este tipo de actividade se enquadrava no domínio da História da Ciência, não é menos certo que a sua condição de professor de Física e a sua tendência para «interrogar as raízes da História», o inclinavam para a pesquisa das origens e progressos do ensino daquela ciência no nosso país.

Rómulo de Carvalho observava ainda a falta de estudos históricos quanto aos assuntos referentes ao ensino, pelo que o levantamento de quaisquer problemas nessa área o deixava quase sozinho, «na penosa necessidade de construir alguma coisa sobre a prévia construção dos seus próprios alicerces».

Classificando de «gravíssima» esta lacuna, dizendo-se incapaz de compreender como poderia uma nação ajuizar das suas potencialidades se não dispusesse de conhecimento histórico sobre o modo como o ensino foi ministrado e respectivos resultados, o professor-poeta apontava que, neste campo de investigação, ainda nos achávamos na fase arquivística. Tal como outro homem de ciência-historiador da educação (Luís de Albuquerque), relativizaria o valor de verdade de estudos históricos da educação que não passassem por esse tipo de procura. «Sobre este tão limitado sector da História, que é o do ensino, encontram-se informações, em obras de responsabilidade, que o conhecimento da documentação original não permite aceitar», afirmaria com justos motivos.

As investigações que empreendia centravam-se no século XVIII. A concentração neste período conduziu-o à reconstrução de uma fase do Colégio dos Nobres, entre 1761 e 1772, e também à recolha de abundantes materiais inéditos, o que lhe permitiu a abordagem de vários temas afins e a publicação de estudos a que chamou «parcelares». Além de trabalhos de história da ciência que daria à estampa ao longo da vida, algumas questões de História da Educação abordaria desde cedo, tais como os Apontamentos sobre Martinho Mendonça Pina e Proença (1693-1743) (Lisboa, 1963) ou o estudo intitulado Sobre os compêndios universitários exigidos pela reforma pombalina (Figueira da Foz, 1963).

Entretanto, a História da Fundação do Colégio Real dos Nobres corresponde a uma das suas obras de maior projecção, continuando a constituir o melhor trabalho que, até ao presente, se publicou sobre esta escola. O período relativo aos 11 primeiros anos do Colégio é reconstituído por Rómulo de Carvalho com segurança e minúcia exemplares. A sua leitura ainda hoje nos provoca uma viva impressão, sobretudo pelo contraste que oferece com outros autores, mais dados à erudição do que às exigências de uma exposição fluente e firmada em documentação inédita ou em fontes secundárias directamente ligadas ao tema. A bibliografia relativa a essa fase do pensamento pedagógico nacional, à cabeça da qual figuravam Pina e Proença, Verney e Ribeiro Sanches, foi analisada com todo o rigor, recorrendo Rómulo de Carvalho, sempre que necessário, a fontes estrangeiras complementares.

O convívio com esta obra permite-nos situar a fundação do Colégio no quadro
de concepções que se manifestavam sobre a educação dos nobres. A sua estrutura curricular foi reconstruída, assim como o seu funcionamento. Os normativos pedagógicos e disciplinares inerentes a um internato são descritos e comentados, assim como os equipamentos e as identidades de professores e alunos. Em alguns pontos, o historiador da educação presta atenção aos pormenores do quotidiano quando a sua significação o justifica.

Rómulo de Carvalho consagra-se com entusiasmo à história do ensino científico, no interior do círculo temático em que foi eminente especialista. Com base na documentação arquivística compendiada, o historiador prova que essa aposta, na qual consistia em grande parte a proposta pombalina de inovação pedagógica, se malogrou. A falta de professores habilitados, mas também a incapacidade dos alunos para assimilarem matérias matemáticas complexas, determinaram o falhanço do ensino dessa disciplina e, por consequência, o malogro do ensino da física de que a matemática era precedência.

Percursor dos liceus, o Colégio dos Nobres tem uma história posterior a 1772 pela qual Rómulo de Carvalho não se interessou. Deste modo, o estudo da instituição acha-se ainda hoje incompleto, em parte por falta de discípulos que prosseguissem o trabalho do mestre. No domínio da história da educação continuou a trabalhar sozinho durante a vida inteira.

Ausente da comunidade académica de historiadores da educação, aliás recentemente constituída, Rómulo de Carvalho teve o imenso mérito de levar por diante um gigantesco trabalho pessoal sobre fontes inéditas, quer estas fossem escritas, quer tivessem a forma de equipamentos laboratoriais. No quadro das celebrações do II Centenário da Reforma Pombalina da Universidade, Rómulo de Carvalho deu à estampa a monumental História do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra desde a sua fundação (1772) até ao jubileu do professor italiano Giovanni Antonio Dalla Bella (1790), editada pela Universidade de Coimbra através da sua Biblioteca Geral em 1978 (724 páginas).

Rómulo de Carvalho ocupa-se neste livro, de modo verdadeiramente magistral, do ensino da Física, de acordo com as disposições inseridas nos Estatutos Pombalinos quanto à orientação experimentalista da docência. Segue-se a análise do processo de construção/adaptação do edifício destinado às sessões experimentais, o estudo da orientação das aulas e dos compêndios, a biografia docente de Dalla Bella, a referência ao pessoal ensinante e auxiliar do gabinete de física até ao jubileu do professor principal, e finalmente o inventário do material do gabinete pombalino, assim como investigações preciosas sobre o seu ambiente museológico.

Os propósitos de Rómulo de Carvalho não se circunscrevem à reconstituição científica e pedagógica do ensino experimental da física. Visa igualmente mostrar como se perderam muitos materiais museológicos e como outros foram recuperados, sobretudo graças à dedicada atenção do Prof. Mário Silva que manteria até ao fim da vida uma atenção apaixonada pelo museu pombalino.

A este notável trabalho de Rómulo de Carvalho, segue-se uma operação semelhante em relação à acção da Academia das Ciências. Trata-se do volume intitulado A actividade pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos séculos XVIII e XIX (Publicações do II Centenário da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1981). Tal estudo viria demonstrar, como sustenta Rómulo de Carvalho, que

"a intenção dos fundadores da Academia era a de fazerem dela uma escola, dedicada exclusivamente ao ensino científico, aliás com o mesmo carácter elitista com que, anos antes, fora criado o Colégio dos Nobres. Os alunos teriam de doze anos para cima enquanto no Colégio eram aceites entre os sete e os treze."

Traço relevante da existência da instituição, quase passara despercebido aos historiadores até Rómulo de Carvalho.

A organização interna da Academia foi igualmente estudada no livro citado, demonstrando que, não tendo sido excluídas as Letras, eram as Ciências Físico-Naturais e as Ciências Matemáticas as áreas a que foi dada a primazia no plano de Lafões-Correia da Serra.

Por outro lado, o historiador escrutinizou a actividade pedagógica do franciscano José Mayne num quadro de educação de adultos, bem como o acervo de instrumentos que viria a constituir importante contributo à formação do ambicionado Museu da Academia. Efectua aturadas pesquisas sobre todo o seu processo museológico, formulando a esperança de vir a estudar o Gabinete de Física da Casa Real, de que era responsável, no período aqui investigado, o holandês Solner, fundador do Museu Lisbonense ao Largo do Carmo, onde decorria um curso público permanente, baseado em experiências laboratoriais, cujas sessões eram pagas em regime de assinatura. A intervenção de Solner, documentalmente provada na aquisição de instrumentos científicos destinados ao Museu da Academia, demonstra a existência, pelo menos em Lisboa, de focos importantes de uma cultura interessada nas «novas ciências». Entretanto, o estudo do Gabinete de Física da Casa Real não parece ter sido levado a efeito.

Temas de história do ensino das Ciências no nosso país foram objecto de outros livros de Rómulo de Carvalho, enquadráveis, devido à sua dupla característica, nos campos da história da ciência e da história da educação. É o caso de três estudos publicados na Biblioteca Breve, editada pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa: A Física Experimental em Portugal no século XVIII, (Lisboa, 1982); A Astronomia em Portugal no século XVIII, (Lisboa, 1985) e A História Natural em Portugal no século XVIII, (Lisboa, 1987).

No primeiro, o autor reconsidera a polémica entre os adeptos de Aristóteles, nos quais se contavam os Jesuítas, e os partidários da Física de Galileu e Newton.

Um dos pontos mais interessantes do trabalho consiste na evocação dos cursistas estrangeiros que, munidos de um Gabinete de Física portátil, se faziam anunciar na Gazeta de Lisboa, promovendo cursos públicos com base em demonstrações experimentais. (A própria Corte não era alheia a semelhantes actividades, assim como o Colégio das Necessidades dos Oratorianos, onde o Padre Teodoro de Almeida assegurava periodicamente aulas abertas ao público, igualmente na base de experiências, graças ao «Gabinete» oferecido por D. João V.)

No volume consagrado à Astronomia, Rómulo de Carvalho apresenta o recenseamento histórico mais completo de quanto se publicou entre nós sobre a evolução daquela área do saber. Principia por abordar a situação da mesma ciência em Portugal nos começos do século XVIII, após o que investiga a actividade astronómica nos reinados de D. João V e de D. José. Além de rever a actividade de Soares de Barros em Paris e de focalizar igualmente a figura de José Monteiro da Rocha, ocupa-se da actividade astronómica nos finais do século. Em qualquer destes volumes é visível a sua proverbial procura de materiais arquivísticos inéditos.

No terceiro título citado, a documentação manuscrita desempenha igualmente
um importante papel, assim como fontes impressas seleccionadas.Também quanto a este livro nos achamos perante um estudo de base que, apesar da sua brevidade, contém, convenientemente sistematizadas, as informações necessárias a quem pretenda iniciar-se no tema.


Uma quarta obra, desta vez editada pela Academia das Ciências, tem a ver com O material didáctico dos séculos XVIII e XIX do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa (Lisboa, 1993).

No campo da História da Educação a sua publicação principal é a História do Ensino em Portugal: desde a fundação da nacionalidade até o fim do regime de Salazar-Caetano, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian na sua prestigiosa colecção «Manuais Universitários» (Lisboa, 1986).

Com a sua produção, viria Rómulo de Carvalho a preencher uma lacuna significativa, apesar da existência de trabalhos de síntese historiográfica, tais como a História da Instrução Popular em Portugal desde a fundação da Monarquia até aos nossos dias, de que foi autor D. António da Costa (Lisboa, 2.ª edição, 1900) ou o manual, com título semelhante, de Sílvio Pelico Filho (Lisboa-Porto-Coimbra, 1923) ou a longa História dos Estabelecimentos Científicos, Literários e Artísticos de Portugal, nos sucessivos reinados da Monarquia (Lisboa, 1871-1889). Se o último não passa de um vasto e sempre útil repositório de datas e outros elementos de informação, desprovido de qualquer estrutura ou organização sistematizada, os dois precedentes cingem-se apenas ao ensino primário.

No prefácio da História…, Rómulo de Carvalho esclarece alguns aspectos de que foi acompanhada a sua elaboração. Em primeiro lugar, o sentimento da falta de uma obra desta categoria, durante as dezenas de anos em que exerceu a docência, capaz de o auxiliar, diz, «a situar-nos numa linha de continuidade, vinda de muito longe e passando por nós, justificando a nossa presença ali, no lugar ocupado, a nossa actuação, a nossa visão dos problemas pedagógicos, permitindo-nos uma consciência profissional que só a custo, e desamparadamente, cada um consegue construir para si próprio».

Deste modo, a História do Ensino desempenha, em seu entender, uma função de legitimação da acção docente, contribuindo para a construção e o reforço ético da actividade profissional mediante a construção do seu sentido. Longe de se destinar a satisfazer curiosidades, aliás legítimas, a história do ensino tem como objectivo central a reconstrução dos seus traços constitutivos, das suas roturas e continuidades nas sucessivas emergências históricas.

A carência de uma obra desta categoria não significava, entretanto, a inexistência de todo um acervo de estudos parcelares de que Rómulo de Carvalho declara ter-se socorrido durante a sua produção historiográfica. Citados na bibliografia, foram completados, neste caso com a pesquisa arquivística e com a análise de publicações impressas oficiais, tais como os Diários do Governo e os Diários das sessões parlamentares, graças aos quais se tornou possível recompor uma visão global do ensino. Uma vez mais se verifica não se ter contentado Rómulo de Carvalho com a utilização de fontes secundárias, senão que procurara confirmações, alterações ou alargamentos de informação mediante a investigação e a utilização de fontes primárias. Deste modo, só em 1985 se concluíra o manuscrito da primeira história global deste sector da cultura portuguesa.

Rómulo de Carvalho confessa as suas hesitações em relação ao título da obra: história de quê? Ele próprio dá a resposta enunciando interrogações e uma certeza:

"Do ensino? Da instrução? Da educação? Da pedagogia? Das instituições escolares? […] Há nesta matéria implicações de tanta ordem, não só estritamente pedagógicas como de outros vastíssimos âmbitos, sociais e políticos, que tornam embaraçosa a escolha da designação mais adequada."

O que não há dúvida, «é de que a história do ensino de uma nação é um capítulo da sua história política».

Deste modo, compreende-se que Rómulo da Carvalho tenha passado em revista não só concepções teóricas implicadas na evolução do ensino, mas também as transformações sofridas por este ao longo da sua evolução secular.

Como diz o Autor, ainda no Prefácio, o volume (com um total de perto de mil páginas, incluindo índices) recupera as «coordenadas mais representativas da actividade pedagógica portuguesa no decurso dos séculos». Neste sentido, seria difícil produzir uma texto mais completo, mais informativo e mais digno de confiança do que o de Rómulo de Carvalho. A sua estruturação obedece a um plano rigoroso e sólido, e o estilo da sua escrita é de uma limpidez, claridade e ritmo tais que lhe imprimem valor estético.

Entretanto, gostaríamos que alguns temas, como o ensino feminino, o ensino especial, a educação dos expostos, tivessem sido objecto de referências ou análises mais circunstanciadas. Eles acham-se actualmente na linha dominante da investigação, do mesmo modo que as práticas de ensino. Fazê-lo, implicaria a inclusão de espaços destinados a mais amplos desenvolvimentos dessas matérias, o que não teria sido fácil na economia do volume. Seja como for, estamos certos de que, a ter sido elaborada nestes dias de hoje, a História do Ensino teria conferido lugares especiais a temas que correspondem a preocupações contemporâneas, embora alguns deles estejam fora do âmbito do ensino escolar no qual nos parece que Rómulo de Carvalho preferiu manter-se. Apesar disso, o leitor achará neste belo trabalho a resposta pormenorizada para as suas principais interrogações sobre a história do ensino e, afinal, da educação no nosso país. Ele apresenta-se também como um desafio à comunidade dos historiadores da educação portugueses, sobre os quais impende o dever de continuarem o caminho já percorrido.

 

 
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