O professor é o método, o processo, a forma e o modo PDF Imprimir e-mail
Estudos - Estudos sobre o autor

 

  Nuno Crato

 Nuno Crato

 

Rómulo de Carvalho foi uma personalidade tão multifacetada, tão interveniente e tão produtiva que os estudos e comentários sobre a sua vida se têm desdobrado em vertentes muito diversas. Aprecia-se, estuda-se e discute-se a sua poesia, fala-se das suas investigações históricas, lêem-se e relêem-se os seus livros de divulgação, publicam-se as suas fotografias. Fala-se, finalmente, da sua docência e destaca-se o seu extraordinário exemplo de professor. Os seus antigos alunos, que são muitos, e alguns em posições destacadas na vida científica e cultural portuguesa, lembram elogiosamente o seu magistério. Curiosamente, no entanto, é nesta última vertente que Rómulo de Carvalho é menos lido. Os seus textos pedagógicos, que foram ocasionais e se encontram dispersos em publicações antigas e de difusão algo limitada, raramente são relidos e apreciados.
Mas Rómulo de Carvalho foi um mestre de professores. Um mestre pelo exemplo e também pelo pensamento.

 

O autor destas linhas teve o privilégio de ter sido aluno desse grande mestre. Na altura, nos anos 1960, Rómulo de Carvalho era metodólogo de Físico- -químicas no Liceu Normal Pedro Nunes e uma figura marcante do ensino liceal.

Alto, aprumado, sempre cuidadosamente vestido, cordato mas de aparência um pouco distante, era um homem exigente consigo e com os outros. Destacava-se pelo seu profissionalismo reservado e pela sua cultura superior, que transpareciam nas mais simples conversas.

Num ambiente já de si austero em comparação com o actual, Rómulo de Carvalho sobressaía pelo seu rigor. As aulas começavam à hora marcada e acabavam ao toque de campainha, parecendo que havia sempre tempo para terminar as experiências, os exemplos e os comentários.

As lições eram cuidadosamente preparadas, como o sublinharam vários dos que com ele trabalharam. As experiências funcionavam bem porque eram treinadas. Alcina do Aido e Maria Gertrudes Bastos, suas estagiárias, recordam-se:

"[Uma] preocupação que nos procurava incutir com a maior ênfase era a necessidade de, nas vésperas de uma lição em que se previa a realização de uma certa experiência, executá-la com o maior cuidado, testando todo o material até ao último pormenor, na tentativa de evitar qualquer falha que pusesse em risco a conclusão que se pretendia tirar."

Não admitia improvisos no que podia ser preparado. Numa correcção de um «ponto» (assim se designavam os testes escritos), um aluno perguntou-lhe por que razão a capacidade da garrafa nele referida era tão estranha, dando a entender que esse valor deveria ter sido introduzido «apenas para dificultar» (qualquer coisa como 1,08 litros). Rómulo de Carvalho explicou que tinha medido a capacidade de uma garrafa vulgar antes de introduzir a medida no enunciado, pois gostava sempre de trabalhar com valores reais.

Nas suas aulas não havia momentos mortos nem hesitações. Cada um falava de sua vez. As perguntas tinham um espaço para surgir, mostrando o professor pelo exemplo que ninguém se interrompe a meio de uma frase. O português que falava era perfeito, com frases incisivas, simples, precisas e claras. Exprimia-se sem cosméticas retóricas e sem rodeios. Percebia-se que o mais importante era sempre transmitir a mensagem de forma clara, rigorosa e inequívoca.

Não contemporizava com modismos e tiques linguísticos. Repudiava vocábulos
na moda e expressões tão genéricas que nada dizem. Condenava a adjectivação imprecisa mas implicitamente crítica – imagina-se que ficaria horrorizado com a forma como se hoje usa a palavra «redutor». Restringia mesmo o uso de adjectivos. Censurava os tiques de mau português, grafias incorrectas e plebeísmos.

Em diálogo com os outros, contudo, sabia que o essencial era comunicar e não corrigir pormenores de linguagem, pelo que não desviava as atenções do ponto em causa. Corrigia preferencialmente pelo exemplo. Mas nas classificações e nos comentários aos testes fazia frequentemente reparos ao português, o que surpreendia os seus estagiários.

Alcina do Aido e Maria Gertrudes Bastos recordariam entre as «marcas indeléveis» que o contacto com este pedagogo deixou no seu espírito, a «sua enorme preocupação com a elegância da linguagem oral e escrita, no mais estrito respeito pelas regras da língua portuguesa». E acrescentariam:

"Os planos de lição que lhe apresentávamos eram criticados, não só sob os pontos de vista científico e didáctico, mas também sob o ponto de vista da correcção de linguagem. O mesmo acontecia na correcção dos exercícios escritos dos alunos. Com esta atitude criou em nós uma preocupação que nos acompanhou durante toda a nossa carreira docente, chegando os alunos a perguntar-nos se, afinal, éramos professoras de Física ou de Português!"


Rómulo de Carvalho tinha um culto pelo pormenor didáctico. Sabia que desse pormenor, apenas aparentemente secundário, resultava o enriquecimento dos alunos e a compreensão daquilo que pretendia comunicar. Ao introduzir um termo novo, sublinhava-o.

"[...] a necessidade de ressaltar bem um termo novo que aparecesse durante uma lição, escrevendo-o destacadamente no quadro e, sempre que possível, apresentando a sua etimologia, de forma a facilitar a compreensão do seu significado."

As suas preocupações com os contextos humano e histórico eram igualmente patentes.Também nos alertou para a necessidade de, sempre que houvesse uma referência a um cientista ou a um inventor, nunca deixar de apresentar os aspectos mais relevantes da referida biografia e, sempre que possível, fazer referência aos contextos social, cultural, artístico e até religioso, do momento histórico em que a descoberta ou o invento tivessem sido levados a cabo.

Nos seus escritos pedagógicos, que se encontram sobretudo em artigos publicados na Gazeta de Física e na Palestra, tinha algumas preocupações constantes. Sublinhemos, a começar, o seu conceito de ensino experimental das ciências, explícito logo num texto de 1947.

Os fins do ensino prático de qualquer ciência são tão universalmente conhecidos que nos sentimos contrafeitos ao falar neles. [...]

"A condição que nos parece essencial é que o trabalho seja útil, que sirva para alguma coisa sob o aspecto formativo. O trabalho não precisa de ter elevado interesse científico nem exigir aparelhagem aparatosa. Ao aluno basta-lhe mexer em coisas comezinhas, medir ou pesar, mas não como mede o alfaiate ou pesa o merceeiro. Tem de criar o espírito de medida, a consciência física do que significa comparar."

E ainda, num texto de 1959:

"[Por vezes] tomam-se como sinónimas as expressões método indutivo e método experimental. Não nos parece nada razoável esta sinonímia na metodologia pedagógica da Física em virtude de ser a experiência uma das vias e, não a única, que preparam o espírito para a indução."

Neste mesmo texto, encontra-se uma das preocupações mais lúcidas e precursoras deste pedagogo.

"Uma coisa é, por exemplo, a Física como ciência; outra coisa é a Física como objecto de ensino. Uma e outra têm a sua metodologia, mutuamente influentes, mas distintas conforme as situações."

É pois necessário distinguir entre a experiência demonstrativa e a investigação científica, não criando ilusões no aluno.

"Entre a experiência efectuada e a respectiva indução que se deseja provocar abre-se um fundo abismo, embora muitas vezes o professor se maravilhe, inadvertidamente, com a facilidade de generalização que conseguiu obter dos alunos. O professor, no seu hábito de insinuar o que deseja transmitir, não chega a dar conta da ponte levadiça que fez baixar sobre o fosso que separava a experiência da respectiva indução, e pela qual os alunos passaram vitoriosamente.
[…] Os exemplos, que poderiam ser numerosos, mostrariam exuberantemente que é necessário ter cuidado ao considerar a experiência como base fundamental do ensino da Física em vista do seu valor como estimulante do processo indutivo. Realmente, não é a experiência que permite a indução. Somos nós, nós os que ensinamos, com as palavras que escolhemos e proferimos no decorrer da sua execução, com as nossas hábeis insinuações, com as nossas escamoteações oportunas, com o nosso conhecimento sagaz do aluno e das suas circunstâncias.
Nós somos, em última análise, o método, o processo, a forma e o modo."

Esta última frase constitui uma das afirmações mais citadas deste autor. Ela torna claro aquilo que já antes se percebia: Rómulo de Carvalho tinha consciência do papel determinante do professor e da necessidade de este conduzir o aluno. Essa ideia, completamente contrária à posterior moda do «ensino centrado no aluno», é uma das mais fortes em todos os escritos pedagógicos e em toda a actuação deste grande pedagogo. Mas é uma ideia que se alia à preocupação por despertar o espírito crítico nos alunos. Simplesmente Rómulo de Carvalho sabia, pela sua larga experiência e pela sua sagaz observação do ensino, que não se pode incentivar a reflexão autónoma se esta não for cultivada através da observação guiada, do estudo, da reflexão e do exercício. E que não é fingindo que os alunos são autores do seu próprio conhecimento que se pode desenvolver esse espírito crítico e autónomo.

Outra ideia que percorre os escritos de Rómulo de Carvalho é a necessidade de fazer os alunos perceber e pensar.

"Os alunos só «acreditam» que um problema de Física está certo quando, na hipótese de obterem um resultado final por meio de um cociente, o resto deste seja zero.Tudo aliás se conjuga para que o erro se mantenha e prolongue: o ensino da Matemática, os problemas [...] são propositadamente escolhidos [...] de modo que tudo se resolva sem o menor esforço. Isto é deveras deseducativo porque afasta completamente a escola da vida."

O que talvez seja mais saliente na prática e na reflexão pedagógica de Rómulo de Carvalho é o seu equilíbrio. Há rigor, mas acompanhado do desenvolvimento da intuição; há objectivos pedagógicos exigentes, mas também a preocupação de despertar o interesse dos alunos; há a experimentação, mas com a consciência das suas limitações; há o destaque da compreensão teórica, mas também a tentativa de ligar a escola à vida.

 
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