Apontamentos para um estudo da assinatura do poeta António Gedeão |
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Estudos - Estudos sobre o autor | |||
A assinatura que António Gedeão apunha nas dedicatórias dos livros que oferecia, surgia a muitos como qualquer coisa de muito diferente das assinaturas correntes, de tipo mais ou menos caligráfico, qualquer que fosse o tipo de letra, mais direita, mais inclinada, mais aberta, mais fechada, etc. Numa entrevista dada à revista Flama, n.º 1048, ano XXIV, de 5 de Abril de 1968, disseram os dois jornalistas entrevistadores: «Apresentámo-nos e pedimos um autógrafo no livro que levávamos. Curvou-se e assinou, desenhando cuidadosamente em vários círculos concêntricos as maiúsculas do seu nome».
Também um antigo aluno seu, pintor de mérito, quando lhe perguntei o que achava da invulgar assinatura de António Gedeão, classificou-a de maneirista. É esta uma maneira de ver natural num artista plástico. Considero que as escritas pessoais não devem ser consideradas de pontos de vista tão exclusivistas, para mais tratando-se de personalidades que saem da vulgaridade. Uma escrita manual pessoal corresponde a um dos campos das manifestações Se a Grafologia não pode ser considerada uma ciência, os seus procedimentos
Eu não sou grafóloga – estudei apenas um livro de Suzanne Bressard, para obter algumas noções e terminologia elementares, mas admitindo desde logo que o estudo de uma escrita pode ajudar a uma aproximação mais compreensiva de uma individualidade. A assinatura de António Gedeão, com a inicial A de dimensões vultuosas, relativamente às restantes letras que formam a totalidade da assinatura, com os seus corpos redondos, formados por sucessivas volutas concêntricas e espiraladas, muitas vezes rematadas por um incisivo pontinho ou olhinho negro no seu centro geométrico, com o traço horizontal do t de António, assim como o ~ do ditongo final de Gedeão, ambos de carácter vincadamente ascendente, não podem ser apenas considerados como fantasias ou ornamentos. Resolvi indagar, até onde possível, a sua lógica de fundo. Começo, assim, como já brevemente aludi, por dizer que o A desta assinatura Analisei todos os manuscritos dos poemas de AG e tomei notas várias, com a data da sua produção, a presença ou ausência de assinatura. Mas não posso nestes breves apontamentos, com as limitações de páginas a preencher para esta publicação, desenvolver um trabalho mais completo, com as respectivas tabelas cronológicas e estatísticas. Limito-me por isso a este breve estudo. Os autógrafos de AG podem distinguir-se por algumas fases, delimitáveis, da sua criatividade. Se é certo que AG começou a versejar muito precocemente, aos cinco anos, como revelámos em Obra completa de António Gedeão, de Relógio de Água Editores, e depois, ainda na infância e na adolescência, continuou a publicar poemas, em jornais da época, poemas em que os temas principais eram sempre a exaltação das personagens de acção notável na vida do nosso país, a que, depois, se seguiu uma fase, já na idade adulta, em que continuou a escrever poesia mas da qual restam apenas alguns sonetos de estilo camoniano. Mas sabemos, pelas suas Memórias a publicar, que destruiu toda essa produção que teria ido mais ou menos até ao ano de 1943. É que foi essa uma fase da sua vida marcada por aqueles dissabores da existência a que se refere, também, nessas Memórias. Seguiu-se depois outra fase, que duraria cinquenta e quatro anos – a do encontro e união com a Autora destas linhas –, em que retoma a feitura de poemas e em que se decide a publicar um primeiro livro de poemas, em Coimbra, em 1956, com o título de Movimento Perpétuo. Mas, ainda antes dos poemas que figuram nesse primeiro livro, existiu uma fase de preparação, digamos, de poemas que não publicou e que veio mais tarde a publicar, já remodelados. É durante este período preparatório (de 1954 a 1955) que lhe surge a ideia da adopção de um pseudónimo. Mas é só de quando em quando que surge uma assinatura nesses poemas, a maior parte das vezes resumida a um simples A (de António). Aliás, ao longo de toda a sua produção, só muito raramente assinava o pseudónimo completo. O elemento que está quase sempre presente é o A ou António. Esse período preparatório para a arrancada definitiva que o levará a definir- -se e a aparecer publicamente como António Gedeão, corresponde a uma grande alteração na sua vida individual. Transplantáramo-nos da nossa cidade natal, de Lisboa e capital, onde nos ficavam, além dos sítios históricos que ele amava, o resto da família, a dele e a minha, e assentávamos em Coimbra, cidade de características académicas e de costumes ainda acentuadamente provincianos, e isto durante o período do Estado Novo. Havia ainda alguns costumes da«praxe», que não nos agradavam, havia procissões pelas ruas, com as figuras gradas da cidade a pegarem nas borlas dos pálios debaixo dos quais seguiam os bispos paramentados, e havia no liceu oficial para que ele fora nomeado uma hierarquia rígida, que envolvia obediências políticas, cívicas e religiosas muito acentuadas. Nesse meio, um professor de liceu devia mostrar-se como uma figura grave, encarregada da instrução e da educação de jovens. Era difícil mostrar uma faceta crítica, filosófica, implicitamente contestatária e, pior, lírica e anti-convencional. Entretanto deu-se na nossa vida um facto que deve ter impulsionado AG a decidir-se por se revelar como poeta, arriscando a ruptura com os convencionalismos. É que eu, sua Mulher, acabara de me lançar na Literatura, em 1952, com um pequeno livro de memórias infantis e depois com dois romances, um de 1955 e outro de 1960, que receberam largos encómios da crítica coeva. O que me levou a romper o isolamento social em que então vivia em Coimbra e a estabelecer breves e superficiais contactos com três ou quatro literatos de Coimbra. Foram acontecimentos que o perturbaram e até possam talvez incluir-se naquilo a que ele chamou os «dissabores da existência». No entanto, estou convencida de que constituíram um forte acicate para que ele tomasse coragem e, debaixo da máscara de um pseudónimo, se decidisse a revelar a outra fortíssima e escondida faceta da sua rica personalidade. Deixava de ser apenas o professor liceal que era, aliás, muito estimado e apreciado, e entrava no reino da Poesia. O Movimento Perpétuo veio revelar de um modo clamoroso pela «trombeta» de Gedeão, o guerreiro bíblico, vitorioso vencedor dos inimigos do seu povo, que ele, o poeta, ali estava também para lutar embora com outras armas. Porquê a escolha de António Gedeão como pseudónimo? «É manifesto que a ocultação de um nome, por adopção de um pseudónimo, de iniciais ou do anonimato, obedece sempre a motivos poderosos dos que a ela recorrem. Logicamente que na maior parte dos casos não se revelam porque são sigilosos ou subjectivos» (Manuel dos Santos Alves, em Jornal de Notícias, Porto, Dez. de 1997). E diz também Abílio Perfeito em «Pseudónimos e Afins» (em A Guarda, 22 de Mar. de 1999): «No aspecto sociológico podemos aproximar este curioso complexo fenómeno do que se dá em certas ordens religiosas, em que os membros deixam o nome do mundo para escolher outro na vida professa». António Gedeão jamais revelou a alguém os motivos que o levaram à escolha desses dois nomes, o do comum António e o do estranho Gedeão. Nas suas Memórias apresenta para o segundo uma explicação: a de que o adoptou do nome de um aluno que tinha esse apelido, o que achou curioso. Não quero dizer que, aqui, o Poeta faltasse à verdade, ao revelar este pormenor, o que me parece é que nem ele soube discernir uma explicação satisfatória. Parece-me que o motivo da célebre trombeta gedeónica, em que a trombeta é tomada como símbolo de fama, de glória e de vitória, seria mais plausível; é um motivo que estaria no seu subconsciente, plasmado no desejo de me acompanhar nos louvores que eu entretanto obtivera com os meus livros, ultrapassando, como disse, a «modéstia» da sua condição de professor, dando asas ao desejo de revelar a sua criatividade poética. Quanto à adopção de António, a minha hipótese admite um sincretismo de dois motivos: por um lado ele tinha um tio materno, de nome António, ao qual devotava uma grande estima, quase filial; por outro lado havia também o meu irmão António, um artista plástico de valor, que tanto era um excelente caricaturista, como um pintor e escultor, de cultura literária, filosófica e científica, que vivia envolvido numa roda de outros artistas, também de grande notoriedade, cujos nomes ficaram na história da nossa arte do século XX, muitos deles pertencentes ao grupo dos neo-realistas, nomes que não vou aqui citar, por sua abundância, e também muitos deles comprometidos em actividades políticas contestatárias do regime autoritário então vigente. Esse meu irmão chegou até a ser expulso da então Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, com a proibição de se matricular em qualquer outra escola superior do país, isto precisamente devidoàs suas acções no MUD Juvenil. O meu irmão António (António Alfredo, usava ele) e os seus companheiros de arte, mantinham reuniões, muitas vezes apenas de carácter festivo, apenas para conversas e risos com os outros jovens, dizerem graças, piadas, críticas jocosas, imitações, uma boémia modesta e sem perversões. Quando eu vinha de Coimbra a Lisboa, algumas vezes encontrei esses grupos, Creio que António Gedeão talvez tenha querido assimilar, através da adopção do nome do meu irmão António, algo com que eu me regozijava mas que, por outro lado, estava fora da sua maneira de ser: nada de caos, numa personalidade que era essencialmente «cósmica», se bem que «com nebulosas e tudo». Aliás, o poeta Gedeão sempre admirou esse meu irmão, tão dotado, tão criativo, mas cuja obra, infelizmente, ficou dispersa e inacabada, como dispersiva e de desbarato foi a sua vida pessoal. Temos então chegada uma altura da vida do nosso Poeta em que ele toma a decisão de se assumir e publicar como tal. Mas nesta chegada à adopção do seu nome artístico, que representa o reconhecimento individual, a tomada de consciência, a assunção da sua condição de poeta vocacionado, deve ele ter passado por um processo psicológico conflituoso, doloroso, repleto de hesitações, de luta consigo próprio, de busca reflectida, de profunda meditação e de tentativas de encontro de algo definitivo. É aqui que se pode apontar aquilo que em psicologia se chama um processo de individuação, com a sua determinada auto-afirmação e também as suas defesas, a descoberta do seu centro de vida. Se a sua autoconfiança fora sacudida, então ele vai tentar projectar essa procura e essa descoberta na sua escrita de poeta, na sua marca, na sua assinatura, um ponto de apoio, de segurança, introduzindo na escrita sinais originais. Os sinais originais que AG introduz na sua assinatura, com o tal A semelhante a uma bola ou a um círculo circunscrito por espirais de várias volutas, e outros apresentando no centro do A (de António) um olhinho central de tinta bem condensada. O motivo circular, a circunferência, o centro, o envolvimento, a espiral, o ponto, o labirinto, o recinto, a roda, a ideia de rotação, para os estudiosos da antropologia simbologista e para os grafólogos, para os psicólogos da psicologia das profundidades, são tudo símbolos, cujas afinidades coincidem todas para significados mais ou menos comuns: o descobrimento do centro da vida das pessoas, através de um avanço, prudente e disfarçado, «procurando construir para si uma casca sem asperezas provocantes» (Cirlot). Essa procura de segurança faz com que se exagere a importância de pormenores que (na escrita) se mostram cheios de enrolamentos, de pontos encerrados dentro de círculos e de ganchos imperceptíveis, como os do G de Gedeão. Segundo os alquimistas, a circunferência era um símbolo da harmonia do universo; para os gnósticos, era a representação de um sistema cíclico temporal: um retorno à unidade, a evolução e a involução, o nascimento, o envelhecimento e a morte. O movimento circular tem também o significado de algo que se põe em andamento, que activa e vivifica as formas. Os círculos vêm a ser afinal como as mandalas hindus que servem
Para Vinchon, «estes círculos [das mandalas] representam também um movimento circular que arrasta e reúne todas as forças claras e obscuras da personalidade», em que o Homem procura obter pelas «mandalas» «um conhecimento apropriado do Eu, como centro da totalidade psíquica que une o Consciente, o Inconsciente, até à união dos contrários» (Karen Horney). Ainda algumas palavras de Carl Jung a propósito das formas circulares, relacionadas com o processo de individuação, ou seja, o reconhecimento do eu profundo, «tendência reguladora ou directriz escondida que engendra uma procura do consciente próprio».
E ainda deste mesmo simbologista: «A bola é uma totalidade que abarca todos os contrários, graças a ela a vida inibida por um combate estéril torna-se possível». Se este escrito não constituísse apenas uma introdução sobre a assinatura de Haveria ainda outros elementos a considerar na assinatura de AG, como o impulso de ascensão representado pelo traço vigoroso, do T e do G, o cordão ou cavilha que parece fechar o G, estabelecendo um limite e um espaço (a ocultação que tende à transfiguração, a facilitar a passagem do que se é para o que se deseja ser); ou, poderíamos também interpretar as circunferências como cercas do espaço onde se esconde um Tesouro, o «tesouro difícil de alcançar», o «motivo dos segredos fundamentais da vida, centro místico […] que haveria de conquistar com a sua dor e o seu esforço, e é ele mesmo renascido da cerca ou da caverna onde o haviam sumido a introversão ou a repressão» (Cirlot). Poderíamos ainda tentar uma comparação entre a assinatura pseudónima de AG e a do homem Rómulo de Carvalho,mas tal não seria possível dentro destas breves anotações, recheadas de transcrições, porque não dispusemos de mais tempo, nem de mais saúde, para uma redacção mais longa, mais clara e discursiva.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
NOTA DA AUTORA: Para além das análises pessoais da Autora, este trabalho sobre a assinatura de António Gedeão, apoia-se também especialmente em obras de Juan Eduardo Cirlot, Karen Horney, Carl Jung, José Antonio Perez-Rioja e Jean Vinchon.
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