António Gedeão: decifrador do mundo, alquimista do sonho PDF Imprimir e-mail
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 Urbano Tavares Rodrigues

 Urbano Tavares Rodrigues


Do Homem com maiúscula, intelectual bifronte que é Rómulo de Carvalho/António Gedeão, podemos dizer sem exagero que ele representa, nesta segunda metade do século XX, a ânsia de saber e o antropocentrismo do século XVI, a sua multidisciplinaridade projectados numa era de incessantes e vertiginosas descobertas científicas, que infelizmente não coincidem com o aperfeiçoamento moral e cívico da nossa espécie.

Em Rómulo de Carvalho, no meu tempo do liceu Camões, por volta de 1940, o professor de físico-químicas mais respeitado e amado desse estabelecimento de ensino. Pedagofo excepcional, polígrafo com o gosto da pesquisa e o talento da divulgação, ninguém então poderia adivinhar que ele viria a ser o poeta António Gedeão, cantor sereno e hiperlúcido, e ao mesmo tempo comovido, das relações tão profundas da ciência e da arte e da solidariedade humana, isto é, dos diversos modos, complementares, de aprender a vida e o universo.

 

Foi ele que veio estabelecer, com a sua poesia, um espaço de conciliação, de interrelação dinâmica entre a cultura literária e humanística, por um lado, e o conhecimento científico, por outro. Como sábio, como alquimista – dos minérios e do verbo – vem António Gedeão, com Movimento Perpétuo, em 1956; com Teatro do Mundo, em 1958; com Máquina de Fogo, em 1961, superar o verdadeiro abismo que existia (e afinal continua a existir, salvo raras excepções) entre esses dois domínios. Os seus poemas lírico-didácticos, de constatação das coisas, de explicação dos fenómenos conseguem a fusão das duas atitudes habitualmente separadas; a sua viva inteligência, a sua palavra serena penetram a mecânica do mundo físico e criam os seus correlatos no jardim das ideias e das sensações.

António Damásio veio recentemente demonstrar-nos, no seu livro O Erro de Descartes, quanto são, ou devem ser, unidas e solidárias, a razão e a emoção. A obra poética de Gedeão constrói, através da beleza dos conceitos e das analogias e da música do verso, uma leitura da Terra, dos reinos animal, vegetal, mineral, em que estão presentes, explícita ou implicitamente, as lições de Copérnico, de Galileu, de Lavoisier, Newton, Darwin, Einstein, como estão, de certo modo, as descrições de Ovídio e de Lucrécio. Propõe-nos simultaneamente essas duas maneiras de olhar e decifrar o visível e o invisível – o mundo e a vida como sucessão de fenómenos físicos, intelectualmente atingíveis pelas operações mentais e pela química emocional.

Jorge de Sena falou-nos, no arguto e meticuloso prefácio que escreveu para as Poesias Completas de António Gedeão, de 1956-1967 2, subtitulado «esboço de análise objectiva», no «carácter experimental» do discurso do autor de Linhas de Força.

Ocorre-me hoje uma comparação entre a poesia de Gedeão e o O Mundo de Sofia, de Jolstein Gardner, pelo que ambos contêm de inteligente pedagogia, embora explorando zonas diferentes do pensamento humano.

António Gedeão só aos cinquenta anos surge como poeta, na plenitude dos seus dons, e vem inserir-se num espaço literário em que Miguel Torga, Vitorino Nemésio, José Régio, Sofia de Mello Breyner Andresen ocupam já uma posição cimeira e em que se afirmaram ou começam a afirmar-se talentos tão diversos como os de Jorge de Sena, Ruy Cinatti, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira.

A veia de António Gedeão é órfica na busca da melodia e do ritmo e em parte por isso, mas sobretudo pela força e generosidade da mensagem, virá ele a ser mais tarde cantado por Manuel Freire e Carlos do Carmo. «Pedra Filosofal» pode considerar-se, no seu género, uma obra-prima, pela fluidez, pelas sonoridades luminosas, pela singeleza dos arranjos sintácticos e rítmicos, lineares, sem transportes, pela riqueza e originalidade das enumerações que lhe dão a respiração, a robustez e o alento, a força motriz, com qualquer coisa de primitivo, mas também de sofisticado, num trajecto que percorre a história da epopeia humana.

Neste extraordinário poema, que é um cântico ao sonho, associado à ideia de progresso, combina-se a terminologia científica e técnica (a cisão do átomo, o radar, o alto-forno, a geradora, o foguetão que desembarca na superfície lunar), com o vocabulário bucólico tradicional (o ribeiro manso, os pinheiros altos), e ainda com a surpresa de certas antíteses e imagens (os serenos sobressaltos, as aves que gritam em bebedeiras de azul).

A epopeia humana a que me referi inclui, decerto, privilegiadamente a aventura marítima dos portugueses; e as longas enumerações que estruturam o poema, após a descrição do locus amenus inicial, não deixam de incluir a rosa-dos-ventos, as Caravelas e o Infante, o Cabo da Boa Esperança, vários dos tópicos comuns a Camões e a Fernando Pessoa. Curiosamente, o mestre trovador que é Gedeão escolhe como metro favorito a redondilha maior. Muito ligado à poesia dos cancioneiros medievais e ao Romanceiro popular, consegue veicular no esquema aparentemente pobre do heptassílabo a grandeza da sua cosmovisão, em que o homem, o «animal aflito» que ele nos apresenta logo no começo do Movimento Perpétuo, vai reger ao longo dos séculos, entre civilização e barbárie, a poderosa orquestra do conhecimento ou, por outras palavras, vai dissipando as sombras e os véus que ocultavam a realidade, gerando assim novas artes e saberes, novas máquinas, dominando a Natureza, cobiçando o império do Universo.

Acontece António Gedeão proferir algumas vezes aos metros tradicionais, como as suas redondilhas, versos de maior fôlego ou até versículos, mas não abandona a rima, mesmo nesses casos.

O efeito de choque que a poesia de António Gedeão produziu aquando da sua estreia derivava em grande parte da sua interpretação da física, da química e da biologia do mundo, associada a uma reflexão filosófica, patente em muitos dos seus títulos e a que não eram estranhos um certo humorismo suave e uma clara esperança, oferecida como estímulo, como ânsia de transformação e também como lenitivo, esperança que mais tarde ele nos dirá ter sido então «necessária» (era o tempo do fascismo e da escrita como missão).

Tanto a arte como a descoberta científica e o trabalho humano fixam a sua atenção e lhe merecem aplauso. Antes de José Saramago ter escrito as suas páginas de homenagem aos trabalhadores que ergueram pedra a pedra o mosteiro de Mafra, no Memorial do Convento, já António Gedeão nos dera o «Poema da Pedra Lioz» 3, mencionando logo de entrada os nomes de «Álvaro Góis / Rui Mamede, / filhos de António Brandão / naturais de Cantanhede; / pedreiros de profissão, / de sombrias cataduras». Nestes versos se projectam o talento e o esforço desses artesãos quase anónimos, lavrando o calcário sob a abóbada românica. Cântico ao trabalho de onde a beleza vai britar e projectar-se no tempo, para além da morte que iguala os nobres e os plebeus.

A participação do poeta, quando Gedeão, quase ironicamente, se assume como tal, no trabalho seu e dos outros, já que os outros estão em nós, como nós neles, segundo a ética e a filosofia de vida do autor de O Texto Poético como Pensamento Social, exprime-se com límpido amor e solidariedade e ao mesmo tempo com a nua visão, racional, do cientista, em «Suspensão Coloidal»

«Penso no ser poeta, e andar disperso
na voz de quem a não tem;
no pouco que há de mim em cada verso,
no muito que há de tudo e de ninguém.
Anda o cego a tocar La Violetera,
e eu a vê-lo, e a cegar;
e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera,
e eu a vê-la, e a esfregar.
Que riso perto, que aflição distante,
que ínfima, débil, breve coisa nada,
iça, ao fundo, esta droga carburante,
rasga, revolve e afasta a subterrânea estrada?
Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e jura e diz que sim,
teoria, doutrina e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele e a mim.»

A noção subtil e humilde que António Gedeão, antes da teorização de Roland Barthes, tem da distância entre o homem o escritor, o enunciador e o texto estão bem marcados no final deste poema.

A solidariedade social, que Gedeão soube exprimir – e era a hora de o fazer – com tão pouco ruído, mas com tanta eficácia e sem demagogia, brilha, em sua luz negra, muito baixa, carregada de comoção e tristeza, na célebre litania «Calçada de Carriche», que ficou no ouvido de Lisboa.

Há alguns pontos de contacto entre Raul Brandão, esse antepassado de todos nós os que sentimos a dor os pisados, dos humilhados, dos sem abrigo nem reconhecimento cívico, e dois grandes poetas de ontem e de hoje, que sonham em comunhão com os outros: José Gomes Ferreira e António Gedeão.

E ambos, no entanto, conheceram o travo da solidão, mesmo na fraternidade e na intimidade do amor. Veja-se o hiper-lúcido e resignado «Poema do Homem Só», de Gedeão:

«Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros não se explicam:
arrefecem.
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços,
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.»

Na poesia de António Gedeão, un sopro de modernidade combina-se harmoniosamente com a maciez e a harmonia da tradição lírica. No entanto, ele será tudo menos um poeta tradicional.

Jorge de Sena sublinha bem no seu já referido prefácio às Poesias Completas a nítida viragem que António Gedeão realiza, opondo frontalmente à concepção física pré-galaica, disseminada no imaginário dos poetas anteriores a ele, os pressupostos científicos do nosso tempo, que vertebram a sua poesia e a iluminam.

Jorge de Sena define mesmo António Gedeão como um «poeta extremamente típico da perplexidade de um tempo socialmente suspenso». É que nos seus livros equilibram-se as afirmações e as interrogações, quer se trate de valores científicos, sociais, humanos ou estéticos.

Neste último aspecto, o de uma estilística própria, há que atentar na importância artística das repetições no ritmo frásico do discurso de Gedeão. Também o uso da terminologia científica, combinada por vezes com termos vulgares, quotidianos, o gosto de precisão unido ao da analogia se notam em tantos poemas, onde alguma vez ressoam ecos de Pessoa ortónimo: «Chamei o meu ser que pensa / para ralhar com o que sente / Sempre que os ponho em presença / sorrio piedosamente» 5.

O sentido da história é uma constante da poesia de Gedeão:

«O escopro de milhões de anos arrancou-te à pedra bruta,
modelou-te em pormenor.
O sangue de milhões de homens, em ti, a ferver, se escuta.
A harmonia dos teus gestos foi revolta, treva e luta.
O perfume do teu corpo foi temperado em suor».

Mas há sempre um grama de cepticismo na esperança de Gedeão, quando ele aponta para o progresso científico e técnico da Humanidade e até para a presença muito forte da arte num estádio superior de civilização. Gedeão desconfia do homem e tem razões para isso.

Logo no seu primeiro poema, o Homem é um «animal aflito», isto é, restituído à sua efectiva animalidade, mas é também «universo em expansão», ou seja, criatura em desenvolvimento, «desde mais infinito a menos infinito», o que supõe a hesitação sobre o desfecho da luta que o homem trava com o tempo.

Arte sempre representacional, a poesia de António Gedeão é um discurso essencialmente voltado o Outro. Embora nela subsistam (e já tivemos ocasião de o ver) marcas individualistas, que por vezes ele reivindica, o enunciador nunca aparece como aquele eu absoluto que rejeita a sociedade e a razão, senão que assume justamente essa razão, como consciência colectiva em si mesmo.

A sua imersão no social é constante e manifesta. Nos antípodas do poeta da torre de marfim, Gedeão move-se no laboratório da sua sageza e dos seus saberes, que abre varandas de cristal para o mundo.

A comunicação é menos para ele a procura de si, embora não deixe de o ser de alguma forma, do que uma lição ou, se quisermos, um diálogo didáctico e filosófico, no mais amplo sentido da palavra, com os outros homens.

António Gedeão nunca está sozinho: em permanente reflexão, está sempre oferecendo aos outros o manacial dos seus conhecimentos, da sua experiência, as suas provetas, os seus tubos de ensaio em sons e sentidos, o seu aparelho de medir, noutras gentes e com elas, a singular passagem da existência.

Diz Leo Bersani, no seu célebre texto sobre o Realismo e o Medo do Desejo, que as literaturas clássicas projectam em geral imagens de rígidas sociedades de classes, nelas sendo as personagens apresentadas de forma unificada, coerente e muito hierarquizada. Ora António Gedeão, procurando reproduzir imagens de penúria e de injustiça no baço Portugal do salazarismo, rompe formalmente com a própria linguagem segregada pelos ditames da classe no poder, ou mesmo com a difusão, ainda quando inaparente, da sua ideologia.

António Gedeão não compadece apenas os homens e mulheres que são sujeitos e objectos do sofrimento e do desprezo social, substitui-se-lhes; e essas criaturas deixam assim de ser apenas olhadas com comiseração para serem investidas de uma dignidade humana, histórica e cósmica, consideradas não só na pequenez a que a ditadura fascusta as reduziu, mas na perfeita igualdade da sua origem biológica e na eventual grandeza do seu destino terrestre.

A ideologia de António Gedeão foge tanto à ideologia oficial como ao padrão cultural da classe dominante, que chega não raro a afectar o discurso mesmo daqueles que contestam o regime. É a ideologia de um sage: cientista, professor, poeta, espectador crítico e dilacerado, cuja intervenção se resume ao seu fazer de artista, mas que penetra fundo em quem o lê. Ele sonha a harmonia do mundo, isto é, a igualdade na desigualdade, a fraternidade na competição ou na luta de instintos; a liberdade íntima e cívica, que só pode conseguir-se através de um aperfeiçoamento incessante e progressivo da espécie humana.

Será redutor empregarmos a palavra socialismo para nos acercarmos desta cosmovisão? O certo é que não encontro melhor expressão. O mundo sonhado pelo trovador de «A Pedra Filosofal» está ao mesmo tempo aquém e além da visão de Fourier, de Proudhon, de Karl Marx? É decerto um mundo sem deus, no estrito sentido teológico da crença num criador do universo, omnisciente e omnividente, detentor do castigo e da recompensa. Materialista, darwnista, einsteineano, Rómulo de Carvalho/António Gedeão sonha no entanto o paraíso possível, a pacificação das feras que são a maioria dos homens, ainda presos e talvez para sempre aos primórdios da sua origem, mas capazes de ternura, de êxtase ante a beleza do mundo. É essa dualidade, a do homem preso à terra e à morte, condicionado pelas leis biológicas, rigorosas, da mecânica universal, e a da ascensão a uma plataforma superior da vida transformada através da cor, do gesto, da música e das palavras, que ele tenta comunicar-nos, ensinando-nos a olhar sem ilusões, mas com calma euforia, a beleza dos rios, das fontes, das plantas, das crianças, a união dos contrários. E assim a sua poesia fala a dor, o absurdo e por vezes, com atormentada alegria, a esperança.

«Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a mesma piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.»

António Gedeão não perde de vista, na sua poesia de amplitude cósmica, o passado português, mas não comenta as proezas de príncipes e heróis: o seu sentido da história volta-o para o colectivo, para o povo e para as grandes mudanças operadas na natureza pelos homens. A gente da arraia-miúda na expansão marítima lusitana aparece com colorido rigor no seu Poema da Malta das Naus, com o riso de dentes podres e o escorbuto, e muitas vezes suor e valentia. É o poema dos homens que moldaram as chaves do mundo.

O ambíguo, polissémico poema «Ballet», que tanto pode referir-se a uma bailarina, como a uma estátua, à música, à arte em geral, traduz a ideia da própria vida em processo de aperfeiçoamento. Começa assim:

«Como jogos de água, ascendes
vitoriosa e ufana.
Soberana,
à superfície do tablado estendes
as linhas com que nos prendes,
filigrana.
Língua de fumo da taça do turíbulo,
endoideceste em beleza.
Vermelha e quente como sangue do patíbulo
é tua natureza.»

e, após quatro estrofes, com desigual número de versos, onde se afirma: «Tua beleza é vitória, / dura vitória da espécie», termina num repto que seria eloquente, não fora o prosaísmo voluntário que o enraíza no chão e no ardor da vida.

«O escopro de milhões arrancou-te à pedra bruta,
modelou-te em pormenor.
O sangue de milhões de homens, em ti, a ferver, se escuta.
A harmonia dos teus gestos foi revolta, treva e luta.
O perfume do teu corpo foi temperado em suor».

Em «Esta é a cidade», o sujeito individual, o poeta lírico, identifica-se plenamente com a Humanidade. A polis, obra do homem, é vista como uma acumulação de células, tão bela quanto uma preparação química ou como uma equação bem resolvida. Cidade turbilhonante, onde em meio dos automóveis, das lambretas, das vespas, da multidão, do sémen, dos charcos, abundam o sonho e a esperança e que desfecha com a adesão do sujeito ao apelo da multidão:

«Lá vou, lá vou.
Galgo os lanços da escada de roldão
e fluo, coloidalmente disperso,
corpúsculo e onda, sem anverso nem reverso,
Fagocitado pela multidão».

Em «Autobiografia», eis-nos perante a honesta piedade e a consciência dramática da dificuldade de intervir, de entrar plenamente no Outro, para além do contacto físico.

No entanto, a fusão do sujeito com a natureza, numa espécie de religião sem deus, aparece-nos em diversos poemas. Tal não o impede de outras vezes sentir a vida como um campo de concentração. Desta dialéctica nasce precisamente a autenticidade e a riqueza interior da poesia de Gedeão.

Já aludi à faceta interrogativa de muitos textos das Poesias Completas. Citarei apenas duas quadras do poema «Quede mim?»:

«Em quê de mim, as diferentes
coisas que vejo, me tocam?
Em quê de ser eu provocam
Excitações tão frementes?
Que coisa de mim se enleia,
Que permanência me afirma,
Que sentido faz sentir-ma
No espaço que me rodeia?»

Contemplativo, Gedeão vê o mundo como teatro óptico, onde procura a beleza dos longes, preservados pelo mistério.

A solidariedade às vezes grita, numa revolta sinceramente fingida (toda a poesia finge a sua verdade) ante os extremos de miséria, ou canta docemente, como se chorasse. Tal é o caso de «Dor de Alma», que no final se propõe acolher em si o sofrimento do mundo:

«Já não tenho o teu engodo,
ó mãe, nem desejo tê-lo.
Prefiro o charco e o lodo.
Quero o sofrimento todo.
Quero senti-lo, e vencê-lo.»

Nos Poemas Póstumos, Gedeão manifesta amiúde certo gosto pelo epigrama e pelo aforismo e até roça às vezes pelo maneirismo, através de caprichosas antíteses, como no esplêndido «Poema das Coisas», onde compara ironicamente o homem e a pedra à fugacidade do amor. Continua a dar-nos poema de vibração colectiva, mas as suas tonalidades tornam-se com frequência mais escuras e o tecido lírico é invadido por um certo cepticismo. Lembro o triste, terrível «Poema do amor fóssil» (Poemas Póstumos), com o seu advertido receio da insensibilidade do mundo cibernético.

Um dos poemas capitais desta segunda fase de António Gedeão é o doloroso «Poema sem Esperança», onde o sujeito poético conta ter simulado por vezes, como um médico, como um soldado, mais esperança do que aquela que sentia. É a hora das últimas confissões: «Era uma esperança imposta, necessária / para as voltas dos dias e das noites».

Mais complexo e contraditório nos surge o poeta, agora na sua total humanidade. Num dos esus poemas mais delicados, «Poema do menino do Higroscópio», Gedeão apresenta-nos a natureza sensualizada pelo pólen, cujos grãos buscam o óvulo. É a pintura da primavera eterna, em que palpita o desejo, real ou imaginário, dos namorados.

Vou terminar.

Ao optimismo do século XIX, à sua crença ilimitada no progresso, sucede neste final do século XX uma habituação ao pesadelo. Di-lo George Steiner, no seu ensaio No Castelo do Barba Azul, onde afirma textualmente:

«Já não admitimos a projecção, implícita no modelo clássico do capitalismo benfazejo, segundo a qual o progresso irradiaria necessariamente a partir dos seus centros privilegiados, acabando por tocar todos os homens. As obscenidades supérfluas das sociedades desenvolvidas coexistem com o que parece ser um estado de fome endémico em grande parte da Terra. Com efeito, o progresso, quanto às esperanças de vida individual e à duração desta, proporcionada pela tecnologia médica, alimentou o ciclo do excesso populacional e da fome. Muitas vezes, os bens e os circuitos de distribuição necessários para a eliminação da fome, da miséria, encontram-se a postos, mas a inércia da cupidez ou a da política não permitem a sua utilização»

George Steiner analisa a falência das esperanças (dos «programas messiânicos») de libertação social, como o de Marx, e a utopia ontológica do progresso humano.

Hoje, perante as desigualdades, o desemprego, as monstruosidades sociais e intercontinentais que estão nascendo dos modelos de globalização, sob a tutela de um pensamento único – o do neo-liberalismo venerador do dinheiro acima de tudo –, sentimos a falta de mais vozes como a de António Gedeão, que se calou após os seus Poemas Póstumos.

Não temos o direito de perturbar a sua paz, solicitando-lhe que volte, que torne a dizer-nos do sonho e da esperança. Mas outras vozes virão talvez na sua mesma linha, trazer-nos a luz da ciência e da bondade, virão bater-se serenamente pela vida contra a morte, pela liberdade contra a opressão, pela inteligência generosa contra o bezerro de ouro e tudo o que gera ou acrescenta a dor dos outros, sentida como nossa.

 

 
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