As interpretações dadas, na época , às causas do terremoto de 1 de Novembro de 1755 PDF Imprimir e-mail
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Em 1 de Novembro de 1755, pelas nove horas e três quartos da manhã, começaram a sentir os habitantes de Lisboa, com espanto e angústia, que o chão lhes tremia por debaixo dos pés. O tremor fora antecedido de um ruído tumultuoso que vinha do interior da terra e que, por si só, não seria assustador, de acordo com a descrição de um contemporâneo que o comparou ao «de muitos coches correndo». E acrescenta: «de modo que os que estávamos na Igreja da Senhora das Necessidades, onde os Soberanos costumão ir aos sabbados, julgámos que chegava Sua Majestade».


Em breves instantes o tremor, que se iniciara por uma sacudidela lenta, cresceu com grande intensidade. As paredes dos edifícios começaram a dar de si, a estalar, a abrir fendas e em breve se desmoronaram abatendo-se sobre as pessoas que alucinadamente fugiam de suas casas, correndo pelas ruas. Era um sábado, e dia santificado, dia de Todos-os-Santos. Por ser dia de especial devoção, e por ser de manhã, estavam as igrejas a transbordar de fiéis que assistiam às missas, o que foi causa de grande mortandade. As pedras das abóbadas dos templos, as colunas dos altares, as paredes em redor, abateram-se abruptamente sobre as pessoas desvairadas e indefesas, erguendo nuvens de poeira que sufocavam os poucos que ainda conseguiam fugir a tempo.

O abalo durou cerca de sete minutos e transformou, em tão curto tempo para tão desoladora mudança, uma cidade cheia de animação e de movimento, num montão de ruínas. Quantas pessoas teriam perecido? Muitos milhares mas não se sabe ao certo quantos.

Ao primeiro abalo, o das nove e três quartos, sucederam-se mais dois no mesmo dia, igualmente violentos, um às onze horas da manhã e outro às três da tarde, provocando novos desmoronamentos, e novas angústias, após o que abrandou a convulsão da terra embora os pequenos tremores fossem prosseguindo nos dias e nos meses que lhes sucederam.

A multidão desvairada entendeu que estaria mais segura correndo para locais descobertos, sem casas nem arruamentos, para o campo se possível, e também para a margem do rio, para a largueza do terreiro do paço real ou para a Ribeira. Tudo inútil. Aí não eram as pedras das casas que esmagavam os fugitivos mas as ondas embravecidas do Tejo que avançavam sobre a cidade e depois recuavam levando tudo atrás de si. «[...] meia hora ou pouco mais de cada num dos tremores succedeo a intumescência do mar». «Em partes fugio muito o Tejo, e o mar descobrio praias, que nunca virão o Sol. Em outras partes entrarão as agoas muito dentro da terra». «O movimento das agoas, foi hum dos effeitos estupendos do Terremoto». «Mais de oito dias depois do primeiro de Novembro não tiverão as marés o seu curso regular».

A tamanha desgraça colectiva ainda se acrescentou a dos incêndios. As velas acesas nos altares das igrejas e nos oratórios particulares, as brasas dos fogareiros das cozinhas na habitação de cada um, facilmente pegaram fogo a panos, a roupas, a papéis sobre os quais tombavam. Logo ao primeiro abalo se seguiu imediatamente «taõ voraz incêndio que acabou por arruinar a melhor parte da Cidade, o qual principiou na mesma hora» - diz uma das testemunhas do acontecimento. A cidade ardeu «durante quatro dias» - informa outro comentador.

A movimentação do solo no decurso da memorável tragédia daquele primeiro dia de Novembro, deu-se segundo diferentes direcções, o que teria sido motivo para que o terramoto fosse mais devastador. Além de se agitar verticalmente também a terra «dava huns balanços com que a modo de embarcação», de nascente para poente e de norte para sul. São concordantes os diversos testemunhos, embora alguns dêem mais privilégio à direcção norte-sul. «A direcção dos seus movimentos» - diz um desses testemunhos - «suppõem todos de Norte a Sul. Não há dúvida, que os mayores, e de mais larga duração forão nesta direcção; e os que eu pude observar foraõ da mesma sorte; mas pessoas veridicas, e de caracter destincto, me affirmáraõ, que houve mudança nestes movimentos, que a terra também tremera do Oriente para o Poente» . Teodoro de Almeida, observador atento, é dessa opinião: «O movimento foi com balanço differente em diversos sitios de Lisboa, e de seus contornos. Em muitas partes foi o balanço de Norte a Sul, e n'outros de Poente a Nascente». O mestre oratoriano apresenta exemplos concretos, que apreciou cuidadosamente, de pormenores de edifícios que ruíram ou não, ou que sofreram deslocamentos, e até o caso de rotação sobre si mesmas de certas estátuas que ornamentavam o jardim da casa de campo do marquês de Ponte de Lima, em Mafra.

Não foi apenas na cidade de Lisboa e seus arredores que o terramoto de 1755 se fez sentir. Ele foi, segundo opinião abalizada, «o mais extenso que a sciencia assignala». O chamado, indevidamente, «terramoto de Lisboa», sentiu-se, pode dizer-se, em todo o Portugal Continental, na Espanha, no Norte de África, nas costas do Mediterrâneo, na Europa Central, na Inglaterra, na Irlanda, na Suécia, na Noruega, e até do outro lado do Atlântico. Os efeitos mais desastrosos deram-se porém no continente português, em Espanha e em Marrocos.

Interessaram-se os estudiosos da época por determinar o local de onde presumivelmente teria partido o abalo de terra, no que só poderiam fazer conjecturas mais ou menos perspicazes. Moreira de Mendonça, a quem a grandeza do desastre animou a estudar as suas causas e os seus efeitos e a escrever uma História Universal dos Terremotos que tem havido no Mundo, de que há notícia desde a sua criação até ao século presente, editado em Lisboa, em 1758, diz, nessa obra, com consciência das dificuldades do tema, que «Assignar o lugar certo do principio deste Terremoto he cousa impossível». As conjecturas que o assunto lhe suscitou, devidamente fundamentadas, levaram-no a uma primeira conclusão, a de ser «bastantemente provável» que o sismo «teve seus princípios nas Costas de África» [...]. A afirmação não lhe pareceu contudo muito segura porque, mais adiante, acrescenta, «outros principies me fazem conjecturar, que a primeira explosão foi no terreno do Occeano immediato a Lisboa». Teodoro de Almeida suspeita apenas que o centro do abalo tivesse sido «quasi debaixo de Lisboa».

Embora faltassem a ambos os citados observadores elementos de informação que lhes assegurassem devidamente o que supunham, a hipótese de que o epicentro do abalo não estaria situado exactamente em Lisboa, como parecia, veio a coincidir com a hipótese apresentada século e meio mais tarde pelo geólogo alemão Wöhrle, em 1900, que entendeu ter sido a zona epicentral no Oceano Atlântico, a sudoeste de Lisboa, hipótese corroborada pelo geólogo suíço, Choffat, que viveu a maior parte da sua vida em Portugal.

Poucos dias após o terramoto de 1 de Novembro de 1755 decidiu o ministro de D. José, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, enviar a todos os párocos do reino um questionário de treze perguntas relativas ao sismo pedindo, com brevidade, as respectivas respostas por escrito. Pretendia-se saber o que se tinha passado em cada paróquia do país naquele dia fatídico, condição necessária para se avaliar a extensão e os efeitos do cataclismo. Perguntava-se a que horas se tinha dado o abalo, que tempo durara, em que direcção se manifestara, quantas casas se tinham arruinado, quantas pessoas tinham morrido, que se notara no mar, nas fontes e nos rios, se a terra se tinha fendido, que providências tinham sido dadas, que repetições de abalos se teriam verificado, etc., etc., um inquérito completo que poderia vir a tornar-se, nas mãos dos estudiosos, um elemento do mais alto valor. Do imenso acervo documental que teria sido o conjunto das respostas recolhidas, vindas de todas as paróquias do país, pouco chegou até nós, e esse pouco só foi estudado, pela primeira vez, já no nosso século, pelo geólogo Francisco Luís Pereira de Sousa que apresentou as conclusões a que chegara, num trabalho publicado em 1914, intitulado Ideia geral dos effeitos do megasismo de 1755 em Portugal 19 .

Pereira de Sousa obteve uma ideia global dos efeitos do megasismo de 1755 não só recolhendo e analisando os dados disponíveis referentes a Portugal Continental como também a Espanha e a Marrocos, lugares onde o terramoto apresentou maior violência, chegando à fixação mais provável da zona epicentral que considerou ter sido «pouco mais ou menos no meio da distância entre o cabo de S. Vicente [no Algarve], e Rabat [no norte de África]». Para Pereira de Sousa «o terremoto de 1755 foi ainda o despertar d'esses movimentos verticaes que originaram o afundimento lusitano-hispano--marroquino e, talvez, os últimos arrancos d'uma parte da Atlantida, já então sepultada nas entranhas do mar». O autor considera este afundimento «como estendendo-se ao S. até o archipelago das Canárias e a O. até o archipelago da Madeira». As hipóteses de o epicentro do megasismo de 1755 se ter situado a sudoeste ou a oeste de Lisboa, e próximo dela, como se supusera, ficaram assim postas de parte.

O terramoto de 1755 deu origem a grande número de escritos que imediatamente vieram a público e em que os seus autores procuraram interpretar as causas do acontecimento. É interessante notar-se que tendo a cidade de Lisboa ficado praticamente destruída, logo as tipografias surgiram do caos para se entregarem à composição e à impressão dos textos que lhes eram apresentados para o efeito. Não é uma só mas diversas oficinas tipográficas lisboetas que recomeçam de imediato o seu labor tão tragicamente interrompido, o que se explica pelo hábil aproveitamento de uma oportunidade excepcional de comerciar colocando nas mãos do público, fortemente sensibilizado, notícias do terramoto. Poderíamos citar cerca de quatro dezenas de trabalhos escritos sobre o sismo, publicados em 1756. O interesse público por tais trabalhos prolongou-se até ao fim da década dos anos sessenta.

Alguns dos autores dos referidos escritos eram homens de mentalidade científica que, embora limitados nas suas apreciações por conceitos falsos de que não conseguiam libertar-se, eram contudo capazes de raciocinarem lucidamente com os dados de que dispunham. Poremos em evidência o caso do médico José Alvares da Silva que, ao apresentar a sua opinião sobre as causas do terramoto de 1 de Novembro, invoca o nome de Francisco Bacon, e diz: «E seguindo o methodo do novo orgaõ das sciencias naturaes que inventou o mesmo Bacon, não me valerei de alguma hypothese precária, sustentando o discurso nos constantes experimentos que me occorrem». É uma atitude «moderna» que merece aplauso. Ribeiro Sanches, que também logo em 1756 se apresenta com um escrito sobre o mesmo assunto, toma análoga posição metodológica: «Naõ se pretende demonstrar evidentemente a causa dos terremotos; tudo o que dissermos dele será por analogia». Teodoro de Almeida, com a sua habitual cautela, escreve, com o mesmo propósito: «Naõ ha coisa mais própria dos Filósofos do que pelos effeitos indagar as causas, que segundo as Leis da natureza os podem produzir».

Estamos perante um conjunto de personalidades, as citadas e outras, que se dispõem a encarar o problema com a máxima seriedade, na posição de homens de ciência, escrupulosos, que não misturam aquilo que lhes parece possível com o que lhes pareceria fantástico, embora se pudessem enumerar, a par destes, muitos outros autores de escritos sobre o mesmo tema para quem estas palavras não se justificariam.

«Entre os Phenomenos, que a Natureza offerece á contemplação da Physica, o mais dificil de se explicar he o Terremoto». Mas, que se deve entender por «terremoto»? «O Terremoto he huma pulsação, tremor, inclinação, ou subversão da terra em alguma parte do Globo Terraqueo». E qual será a causa desse fenómeno?

Nestes meados do século XVIII a visão que qualquer homem culto possuía da composição do Universo na sua globalidade baseava-se na velha concepção dos quatro elementos de Empédocles, a terra, a água, o ar e o fogo, com que se esgotam as aparências físicas que se nos deparam, o sólido, o líquido e o gasoso, e, aparte, o fogo que é distinto de tudo o mais, nem sólido, nem líquido, nem gasoso, matéria ardente geradora de luz e calor. Tudo quanto existe é constituído por esses quatro elementos, ou só por si, ou reunidos em proporções diversas, formando mistos. Bento Morganti assim se exprime em Carta de hum amigo para outro [...]: «O globo que habitamos sendo vizívelmente formado de terra, e de agoa não deixa com tudo de nutrir em suas entranhas hum fogo effectivo, material, e ardente, que o ether excita por sua virtude activa, e movel, e como o ar se introduz em tudo, e naõ podendo ao mesmo tempo o fogo subsistir sem este elemento, disto resulta, que estes quatro elementos, ou princípios se achaõ misturados huns com os outros, de sorte que todos juntos formão este globo, e tudo quanto nelle se produz participa destas quatro substancias». Repare-se em que Morganti, além de se referir aos «quatro elementos» também alude a um «éter» que é o excitante desses elementos. Encontramos num outro autor, a definição deste «éter», sem o qual os elementos seriam inertes: «O Ether, fluido o mais sutil, e movel que tem a natureza, he aquelle corpo, em que o Supremo Author do Universo infundiu hum perpetuo moto. Com este agita o fogo, tem um movimento a agoa, não deixa aquietar o ar, e corre por todos os mixtos da terra». É o indispensável conceito de energia para completar o quadro da Natureza.

A origem dos terramotos tem de ser adaptada a esta visão. Como intervêm os elementos para que o fenómeno se processe, e quais, se não forem todos?

A interpretação exposta pelos pensadores do século XVIII, em pouco difere, substancialmente, da que fora dada, há muitos séculos atrás, pelos filósofos da Antiguidade Clássica. Eles próprios, os observadores setecentistas, citavam nos seus escritos os nome dos antigos filósofos com quem estavam de acordo ou em desacordo, com Parménides que atribuía a causa dos terramotos à terra, com Anaxágoras que a atribuía ao fogo, com Arqueláu que a atribuía ao ar, etc., e aplaudiam-nos ou criticavam-nos conforme a sua visão pessoal. A consideração pelas opiniões dos Antigos pesava fortemente nas suas mentalidades e as suas interpretações das causas dos terramotos quase se resumiam a decidirem qual dos Antigos é que tinha razão. De semelhante atitude nem sequer se libertavam os espíritos mais «modernos» de então, como Ribeiro Sanches. Para este ilustre médico setecentista quem dissera a verdade sobre os terramotos fora Plínio. Sanches o diz: «Pareceome supérfluo copear aqui a bella e judiciosa descripçaõ que Plínio fas dos terremotos». E envia o leitor para o Livro II, cap. 79 e 80 da Historia Natural daquela grande figura da Antiguidade Clássica.

A teoria generalizada da causa dos terramotos assentava no princípio de que existem enormes e profundas cavernas no interior do planeta onde se acumulam materiais diversos. Umas contêm «mistos» como sejam o enxofre, o salitre, os betumes, os metais, onde o «elemento» terra se encontra reunido a outros elementos, em proporções diferenciadas cuja diferença justifica as qualidades que distinguem esses mistos entre si. O enxofre, por exemplo, é um misto de terra, de ar e de fogo em certas proporções. Outras cavernas (ou receptáculos) contêm ar. São os «aerofilácios». Outras contêm água e outras fogo. São os «hidrofilácios» e os «pirofilácios». Dos hidrofilácios conhecem-se dois géneros: «huns, que na profundidade dos montes perpetuaõ as fontes, e os rios, como nos Alpes o hydrofilacio donde nasce o rio Pó, [...] outros, que no mais profundo da terra se conservaõ perpetuamente cheyos de agoa, por cuja causa se chamam abysmos na Sagrada Escritura, quando diz, que se abrirão as fontes do abysmo, para que juntando-se com as chuvas do Ceo inundassem o mundo todo, [...]».

É desta teoria das cavernas, dos grandes «filácios» no interior do planeta, que vai surgir a interpretação dos fenómenos sísmicos. Para o padre Teodoro de Almeida não resta a mínima dúvida de que tudo provém das cavernas onde se acumula o elemento terra nas suas diversas variedades. «Deixadas as opiniões de muitos antigos, que não merecem ser nem seguidas, nem impugnadas, tenho por certo que os Terremotos procedem de fermentação dos mineraes, particularmente enxofre». O mestre oratoriano tinha a seu favor, e nela se apoiava, uma célebre experiência efectuada pelo químico francês Nicolas Lemery (1645-1715), correntemente citada por todos os autores que escreveram sobre o assunto, experiência que surpreendeu o mundo científico da época em que foi realizada e ficou conhecida na História por «experiência do vulcão de Lemery». Lemery preparou um aglomerado de limalha de ferro muito dividida, e de enxofre, amassou o conjunto com um pouco de água e introduziu-o no solo, em terra, a um palmo de profundidade. Passadas algumas horas a terra que cobria a mistura começou a estremecer, a notarem-se nela pequenas fendas de onde emanavam fumos acabando por ser atirada ao ar energicamente, abrindo-se uma boca de onde saíam chamas. Não seria possível ter melhor imagem do desenvolvimento de um tremor de terra e da formação de um vulcão.

Os efeitos da pólvora inflamada, mistura de salitre, enxofre e carvão, conhecida desde há muitos séculos, era também prova convincente de que a «fermentação» dos mistos nas cavernas subterrâneas era causa de terramotos. «Huma mina de pólvora na sua explosão forma hum tremor de terra», diz Joaquim Moreira de Mendonça na sua História Universal dos Terremotos, recordando dois acontecimentos assinaláveis. Um deles foi o que se passou na praça forte de Azof, então em poder dos Turcos, cercada pelo exército russo, onde esteve presente, na sua qualidade de médico, Ribeiro Sanches que relata o que então se passou. Uma bomba caída no armazém da pólvora do forte sitiado, onde se guardavam quinhentos barris daquele explosivo, pegou-lhes fogo provocando um estrondo pavoroso e um violentíssimo abalo que desmoronou quase todas as casas das proximidades até grande distância. O outro acontecimento citado por Mendonça foi o que sucedeu em Lisboa no dia 13 de Fevereiro de 1745, em que também se incendiaram alguns barris de pólvora arrumados numa casa de madeira, na Ribeira. O estrondo e o tremor causados sentiram-se quase em toda a cidade e ficaram arruinados muitos edifícios próximos do local da explosão.

Com semelhantes exemplos tinha Teodoro de Almeida razão para estar convencido de que os tremores de terra provinham das cavernas subterrâneas onde fermentavam os mistos acumulados. «No célebre terremoto de 55» - escreve o mestre oratoriano - «rebentou em varias partes a Terra, lançando grande copia de huma matéria negra e betuminosa, que mostrava ter grande porção de enxofre, tanto na chamma que lançava de si, accendendo-a, como no cheiro: eu tive hum pedaço nas minhas mãos, e me certifiquei disso».

A origem dos terramotos não deixa dúvidas para Teodoro de Almeida que pode assim resumir o processo de formação de um abalo de terra: «Toda a vez que alguma causa accidental fez ajuntar os mineraes inimigos, hão de fermentar; assim como v. g. [verei gratia = por exemplo] fermentão a cal com a agua fria: e fermentando-se a matéria capaz disso nas cavernas da Terra, varias cousas necessariamente devem acontecer. Primeira: se a capacidade das cavernas não puder conter a matéria, que se dilatou, deve tremer, em quanto não desaffoga por alguma parte, ou se apaga a matéria. Segunda: huma vez acceza a matéria n'uma caverna, pegará fogo pelas cavernas vizinhas, onde quer que achar matéria capaz de se inflammar, ou dilatar; e para isso basta qual quer fenda ou racha e temos já que se deve communicar o terremoto a muitas léguas, em hum mesmo tempo sensivel; como succede na inflamação da pólvora, que por bem ténues rastilhos arde ao mesmo tempo sensivel em lugares mui distantes. Terceira: segue-se que não só ha de tremer o lugar superior ás cavernas que ardem, mas todos os circumvizinhos em redondo».

Enquanto para alguns investigadores é ao elemento terra que se deve atribuir a causa dos terramotos, para outros dever-se-á atribuir ao ar contido nos aerofilácios a responsabilidade dessas terríveis convulsões. Duarte Rebelo de Saldanha apresenta as suas razões a favor da intervenção do ar na eclosão dos sismos, na sua obra Illustraçaõ Medica: «sendo o ar um corpo fluido, que consta de partículas muito ténues, ramozas na figura, ou a modo de flexíveis spiras, elásticas, e com pequeno nexo entre si, se vê a intima similhansa, ou analogia (por não dizer identidade) que tem com o nitro: [nitrato de potássio] e já houve quem disse que não era o nitro outra coisa mais do que um ar condensado, assim como o ar um nitro rarefeito. Sendo o ar dotado deste caracter, precizamente ha de soffrer uma insigne compressão: ninguém hoje lha duvida; e o incomparável Boyle a mostra com innumeraveis experimentos» [...]. Assim, «se elle [o ar] comprimido nas cavidades da terra chegar a dilatar-se por algum principio, nestes termos concutindo os penhascos, e corpos obsistentes, os commoverá de sorte, que succedaõ todos os impulsos competentes a formar um tremor na terra. Succede este fenómeno com muito maior forsa,» [...] «quando se dilata por cauza do calor, porque lhe aumenta a sua elasticidade para os impulsos, explozões, e commoções;» [...].

Entre os diferentes autores que puseram em destaque a intervenção do ar na eclosão dos terramotos, dando-lhe importância de relevo ou até mesmo atribuindo-lhe papel exclusivo no acontecimento, não queremos deixar de apontar Ribeiro Sanches que tão grande renome obteve internacionalmente como médico no seu século. Expressamente escreve Sanches: «He certo que no interior da terra existe Ar nas cavernas de que he composta, e que ficará taõ comprimido como for a profundidade do lugar em que estiver». Sanches apoia-se em experiências efectuadas pelo físico francês Amontons (1663-1705) que concluiu ser a densidade do ar no interior da Terra, à profundidade de dezoito léguas, do mesmo valor da densidade do mercúrio: «Do referido se vê» —continua Sanches — «que basta para causar terremotos que o Ar no interior da terra se rarefique».

Tanto Sanches como Rebelo de Saldanha atrás citado, e outros diversos autores que poderíamos acrescentar, consideram o ar como bastando por si só, para dar origem a terramotos, mas acreditam que o processo se desencadeia com mais eficiência se ao elemento ar se juntar o elemento fogo. Este último será, realmente, dos quatro elementos que compõem o Universo, aquele a quem caberá o papel de agente de maior relevo em todo o processo. A terra e o ar, embora só por si fossem suficientes para provocarem os abalos (aquela, devido às «fermentações» a que está sujeita; este, devido à sua elasticidade) só actuam vigorosamente se o fogo os activar. O outro elemento que resta, a água, pode concorrer eficazmente para o abalo terreno mas não dispensa o estímulo do fogo. A água, o elemento mais esquecido na exposição destas teorias, foi lembrado, por exemplo, por Francisco Corte-Real, na Nova Instrucçam Filosófica, nos seguintes termos: «Por virtude do fogo subterrâneo muitas vezes adquire a agoa huma tal effervecencia que naõ cab~edo nas estreitas clausuras da terra com toda a força solicita depois de rarefeita occupar extençaõ mais dilatada: mas he assim, que naõ pôde muitas vezes conseguir aquella dilatação que intenta sem demover convulsões, e tremores de terra, até que esta lhe facilite a sahida».

Analisando as opiniões dos diversos autores setecentistas sobre a génese dos terramotos, recolhe-se a impressão de que todos eles dizem a mesma coisa embora, na aparência, se mostrem em discordância entre si, desfavorecendo certos pormenores e enaltecendo outros. Na verdade reconhece-se que é o fogo que em todas as teorias expostas se apresenta como o elemento indispensável à eclosão do abalo de terra, ou actuando directamente ou inflamando as terras combustíveis ou vaporizando a água ou dilatando o ar. Acreditava-se na existência de um fogo, contido nas tais cavernas denominadas pirofilácios, que poderia comunicar, através de uma rede de canais subterrâneos, com as cavernas onde se continham os outros elementos, e nelas provocar os seus efeitos. Mas, que poderia ser esse fogo? Não seria ele o próprio Inferno de que fala a Sagrada Escritura? Veríssimo de Mendonça, irmão do autor da História Universal dos Terremotos, não tem hesitações a esse respeito: «He sem duvida,» - escreve - «que no centro da terra há o fogo do Inferno, que tantas vezes nos lembra a Escriptura Sagrada. E ainda que este fogo seja destinado para o tormento das almas dos condemnados, e eterna satisfação das Divinas offensas, sempre he verdadeiro fogo, e da mesma natureza, que o elementar; bem que pela matéria sulphurea, e betuminoza seja mais denso, e abrazador».

Noutra perspectiva, o já citado Duarte Rebelo de Saldanha, médico de profissão, sentiu bem a dificuldade de estabelecer um conceito satisfatório de fogo: «Conceptuar o intrínseco, e essencial constitutivo do fogo» —escreve aquele autor—, «sendo taõ claro á vista, he bem escuro para o entendimento». Prefere, de tudo quanto tem lido ou ouvido a esse respeito, o sistema defendido por Pierre Gassendi (1592-1652) que considera o fogo constituído pela «união de muitos átomos redondos, subtilíssimos, e movidos por seu próprio ímpeto com exacta celeridade». «Estes átomos libertados, e juntos em grande numero constituem as partes, e o todo, que he igneo, e deve constar das sulfúreas em mais quantidade, e de partes nitrozas em menos;» [...]. «Estas partículas sulfureo-nitrozas unidas, e postas em acto saõ o que vulgarmente chamaõ Elemento do fogo» [...]. «Este fogo que se nutre nas entranhas da terra he um fogo effectivo, e não imaginário;» [...] . É este elemento —escreve outro comentador— «que communicandose por occultos conductos e algumas cavernas cheyas de enxofre, salitre, carvaõ, salarmoniaco, &c. as inflamma de tal sorte, que accendendo-se promptamente hum fogo impetuoso, converte este quasi instantaneamente em vento aquellas matérias salnitrosas;» [...]. «Impélle, e commóve com fúria os fundamentos dos montes; e abrindo brecha pela parte, que menos lhe resiste, rompe com tudo o que se lhe oppôem, até alcançar sua liberdade natural, de que se origina o tremor, e estremecimento da terra, que em semelhantes casos com tanto horror se percebe» .

Os diversos autores até aqui mencionados, que tornaram pública as suas opiniões sobre a origem dos terramotos, eram observadores estudiosos, mais ou menos credenciados, mas não falavam de cátedra. Nas escolas, porém, as teorias que se expunham sobre o assunto em causa, viam a questão de modo análogo. Os mestres eram, desde há muito, os padres da Companhia de Jesus, e os textos dos manuais que serviam de estudo respeitavam a tradição escolástica segundo a qual se atribuía a causa dos terramotos ao «hálito ou espirito igneo, que nas entranhas da terra clausurado, com toda a força, conato, e impulso, pretende desprender-se do claustro em que se acha recluzo, intentando espaço mais amplo, e dilatado; e encontrando a resistência do obstáculo, que lhe fazem os lados, ou superfície do corpo terrestre, no repetido acesso, e retrocesso que faz, dimove a terra com tanto ímpeto, quanto se tem experimentado na honrosa impressão deste protentoso metheoro». «Soares Lusitano, e o eruditíssimo P. [Padre] Cordeiro» — ambos mestres jesuítas — «tem por indubitável, que no centro da terra ha multiplicidade de receptaculos, que se chamaõ Pyrofilacios, porque nelles se conserva o fogo communicado, e diffundido por todas as partes do Globo terrá queo;» [...]. A favor da sua teoria apresentavam os jesuítas «vários experimentos artificiosamente complicados por engenho, e industria dos Romanos; principalmente daquellas alampadas, que se conservarão perpetuamente accezas dentro dos mármores dos sepulchros, em que se depositavaõ os seus antepassados». Assim, concluem aqueles mestres, se «por industria, e arte humana se pôde conservar debaixo da terra perpetuamente aceeza a luz do fogo: logo também o mesmo fogo, se conservará com mais razão perpetuado no centro da terra por beneficio, e industria da natureza» [...]. «O alimento perpetuo deste elemento he o grande cumulo de partículas de betume, enxofre, e de nitro, que nas occultas recameras, de que se compõem o Globo terrestre lhe está continuamente subministrando a mesma natureza por pabulo:» [...].

Quando as exalações dessas combustões subterrâneas atingem a superfície da Terra e dela se escapam através de fendas que encontrem, sobem na atmosfera, ascendem até grande altura e vão-se incorporar nas nuvens carregando-as de partículas betuminosas, sulfúreas e nitrosas. As nuvens passam a comportar-se como as cavernas do interior da Terra dando então origem aos relâmpagos, aos trovões e aos raios. Ribeiro Sanches amplia largamente esta visão e não tem dúvidas a tal respeito quando afirma nas suas Consideraçoins sobre os Terremotos: «As mesmas causas dos terremotos e dos Volcanos saõ as mesmas das auroras boreais, das estrelas cadentes, dos globos de fogo, dos relâm pagos, dos trovoins, e dos rayos. Todos estes meteoros provem do enxofre, e das matérias oleosas que se exhalaô das plantas aromáticas, dos animais viventes, ou mortos, dos bitumes, das fontes sulfúreas, que chamamos caldas, dos volcanos, nevoeyros, da defla gração de tantos metais, e minerais; todas estas exhalaçoins vem aparar na atmosfera; e como nella existaô infinidade de vapores, de que se formão as nuvens, nestas ficaô encerradas as exhalaçoins sulfúreas, como nas cavernas no interior da terra:» [...].

No terramoto de 1 de Novembro de 1755 as águas do Tejo invadiram com grande ímpeto toda a zona costeira da cidade. O movimento das águas e os tremores não foram simultâneos: primeiro tremeu a terra; depois subiram as águas. O fenómeno repetiu-se analogamente em cada um dos três grandes abalos que se sentiram naquele terrível dia.

Teodoro de Almeida, no diálogo que mantém com os seus interlocutores na Recreação Filosófica, explica aquele movimento das águas com seus habituais cuidados, apresentando a explicação como «pura conjectura». Uma vez desencadeada a «grande inflammação nas cavernas subterrâneas, ou grande fermentação dos mineraes,» [...] «todo o terreno superior se levanta para cima». A terra fica «como inchada, intumescida, e foufa; mas serenando a inflammação, vai outra vez assentando no seu antigo lugar» [...]. «Se o terreno no tempo do tremor se levantar 20 palmos, o mar fugirá tanto, quanto he preciso para descer vinte palmos;» [...] «porém descendo o terreno para o seu assento, tornarão as aguas a buscar o seu antigo lugar;» [...]. Mas, «como as aguas em concebendo hum movimento, vaõ muito alem do que devem ir por conta do equilíbrio», ficarão a balancear com amplitudes cada vez menores até se aquietarem de todo.

Para se fazer compreender melhor Teodoro de Almeida assemelha o caso considerado ao de um algudar com água que se fizesse inclinar levantando-o um pouco com as mãos apenas por uma pequena zona do seu bordo. Assim «a agua ganhará balanço, e fugirá da borda que se levantou; mas em se assentando o alguidar, no segundo balanço a agua naõ só chegará ao lugar antigo, mas passará muito avante, e trasbordará por fora. Assim considero eu o Mar, como hum tanque immenso de agua; que muito he logo que, levantando-se o terreno sobre as cavernas que ardem, e tornando ao seu assento, as aguas ganhem balanço, ora fugindo, ora inundando, até se accomodarem?».

O facto de a cidade de Lisboa se encontrar situada na margem de um grande rio e nas vizinhanças do mar só por si justificaria que o terramoto se desenrolasse com tão grande violência, pois existe nessa zona «grande copia de hydrophilacios, e aqueductos de agoa salina, que com perpetua circulação lhe vay distribuindo, e repartindo pelas grandes cavidades, de que abunda os mayores cúmulos de matéria salitrosa, que he a mais proporcionada, e mais bem disposta para a mayor intensaõ do terramoto» [...]. O que bastantemente se comprova das muitas fontes cálidas, multiplicadas fontes mineraes das Alcassarias, das caldas da Rainha, e de outras mais agoas salitrosas, que contêm a circumvisinhança do destricto de Lisboa; as quaes nos offerecem huma prova cabal, e manifesta da multiplicidade de mineraes de salitre, de enxofre, de outros mais inflamáveis, e combustiveis do fogo, que encerraõ dentro de si as concavidades deste terreno. Inflãmando-se pois os aglomerados cúmulos dos mesmos combustiveis» [...] «e auxiliados do impulso do veto saõ os q occasionaraõ a mayor intensaõ do terramoto,» [...] .

Discutiu-se também, entre os autores que apreciaram o acontecimento daquele dia primeiro de Novembro, se teria havido ou não quaisquer sinais prévios da Natureza que permitissem prognosticar o terramoto. A opinião quase geral é afirmativa, que sim, que até foram vários e bem definidos os sintomas do que estava para acontecer. Francisco Corte Real fala-nos da «futuriçaõ» dos terramotos em geral: repentina turvação das águas das fontes e dos poços, efervescência das águas das fontes, intumescência das águas dos mares, grandes ruídos subterrâneos, pavor insólito dos animais que saem aterrorizados das grutas em que habitam, secagem repentina de algumas fontes e aparecimento de outras, mudança de suas águas de cálidas em frias e de frias em cálidas, intempestiva serenidade do ar, extraordinário frio no tempo de estio, aparecimento de uma nuvem em forma de coluna de fogo e de outra em linha comprida depois do ocaso do Sol ou ainda com dia estendida no céu, círculo em redor do Sol ou da Lua, vapor denso de tom amarelo na atmosfera e, finalmente, ventos impetuosos e continuados. Para todos estes casos dá, o autor, justificações e exemplificações, sem se ocupar, em particular, do caso do terramoto de 1755. Quem dele se ocupa com igual intenção, é Joaquim Moreira de Mendonça, na História Universal dos Terremotos, fazendo notar que o inverno de 1751 foi de copiosas chuvas, em Portugal, principalmente na região de Loures; que os anos de 1753 e 1754 foram extremamente secos e com excessivos frios que gelaram as águas, não só as estagnadas como as correntes; que houve, nesses mesmos anos, grande tormenta de ventos; que no princípio do outono de 55 novamente caíram grandes chuvas; que nos últimos dias do mês de Outubro desse ano, já nas vésperas do terramoto, «se observou huma extraordinária intumescência das agoas do mar». Lamenta o autor que não se tivesse dado a devida importância a tais prognósticos, e escreveu: «Os princípios desta grande obra da natureza» [o terramoto] «não forão occultos aos homens, posto que a falta de reflexão deixou inúteis os signais delia». Considera que se processava já, no mês de Outubro, no interior da Terra mais próximo da superfície, «huma grande evaporação de partículas ígneas, aquosas, e de outras espécies, as quaes formavão na Athmosphera nuvens, cuja densidade, figura, e cor extraordinária erão objecto do pasmo de muitos Povos». Na véspera do terramoto viu-se no espaço um globo de luz, conforme «referirão algumas pessoas do campo, que vinhão para a Cidade. Notou-se também em algumas partes huma grande inquietação, e espanto nos animaes domésticos, e do monte» [...]. «No fim do dito mêz» [de Outubro] «começarão a apparecer em varias partes as agoas turbas com mudança de sabor. Assim o observei muitos dias com displicência do máo gosto, que achava na agoa do poço do Senhor de Murça, de que usava por boa». Note-se que não se trata agora de informações adquiridas através da leitura de livros a respeito dos sinais que teriam antecedido o terramoto de 55, mas de factos que o autor apresenta como concretos e dos quais diz ter sido testemunho pessoal de alguns. E prossegue: «Em diversas terras foi visto hum vapor, como fumo, que sahia da terra, e causava hum grande defeito á luz do Sol, e da Lua. Na véspera do dia do Terremoto pelas cinco horas da tarde vi eu com grande admiração do adro da Igreja de N. Senhora da Graça esta Cidade cuberta de huma espécie de fumo amarelo escuro, que me causou algum espanto pela densidade, e cor. Na mesma noite se ouviu o mar summamente embravecido, posto que o tempo estava muito sereno. Experimentou-se o ar quente com hum calor, que a estação não permittia. Multiplicárãose em breves horas os signais da grande fermentação, que se estava fazendo no interior da terra».

Não se pode negar convicção ao autor destas palavras. Contudo, para outros, os «prognósticos» apontados seriam acontecimentos sem qualquer relevância. Quando Eugênio, um dos interlocutores de Teodoro de Almeida, lhe pergunta, na Recreação Filosófica, «E poderemos ter alguns indícios antes dos Terremotos, ou no ar, ou nas nuvens, pelos quaes nos acautelemos?», responde-lhe o mestre oratoriano: «Nenhum acho, que mereça séria attenção;» [...].

O tipo de sinais da Natureza que permitiria prognosticar a proximidade de um terramoto, segundo os autores consultados, é necessária consequência das teorias por eles defendidas. Em todas essas teorias se imagina a produção de exalações provenientes das concavidades da Terra, exalações que alcançariam a superfície do solo dissipando-se no exterior através de fendas abertas no terreno ou já existentes, ou através da boca dos vulcões. A presença dessas exalações na atmosfera provocaria nuvens estranhas na forma e na cor, globos de luz, vapores que ensombravam o firmamento, halos luminosos no Sol e na Lua, aquecimento do ar, etc..

Também se discutiu, entre os autores, se haveria lugares mais sujeitos a terramotos do que outros, se haveria estações do ano mais propícias à sua eclosão, e horas do dia ou da noite preferenciais. Tinha-se em vista compreender por que teria sucedido aquilo em Lisboa, em Novembro, e de manhã.

Para tudo isto tiveram os observadores respostas fáceis, aliás fundamentadas em afirmações dos filósofos «antigos». Em Lisboa, porquê? Bento Morganti responde com clareza, embora sem se referir concretamente a Lisboa: [...] «as partes mais próximas ao mar saõ sempre as mais sojeitas a sentirem os effeitos deste fogo subterrâneo, porque o mar lhe offerece huma matéria mais abundante para a sua subsistência, que as outras partes da terra, e por isso ordinariamente no mar he que rebenta o fogo, que causa os terremotos nas partes circumvesinhas, e adjacentes,» [...].

E em Novembro, porquê? Já Aristóteles dizia que o Estio e o Inverno são pouco propícios a terramotos. [...] «naõ succedem tanto no Estio, porque com o calor demasiado, e excessivo de tal sorte se abrem os poros da terra, que por elles se exhalaõ com facilidade, e sem a minima resistência aquelles espíritos, ou exhalaçoens de fogo, que saõ a origem do terremoto:» [...]. O Inverno também não lhes é propício «porque pelo excesso, ou demasia do frio estão obturados os poros, e os meatos, que em si contêm a superfície do globo terráqueo» [o que pareceria ser favorável aos terramotos]; «e pela mesma causa e motivo naõ se accendem taõ facilmente, antes estão como sopitos com o frio aquelles hálitos, ou espíritos ígneos, que podiaõ concorrer para este me theoro». Na Primavera e no Outono, «principalmente quando o Verão antecedente foy muito seco» é que os terramotos se dão com maior frequência. O autor que estamos agora seguindo justifica a afirmação: «porque tanto no Outono, como no tempo da Primavera mais se profundaõ as agoas da chuva; e como levaõ comsigo a mistura de varias partículas sulfúreas, e nitrosas, que por occultos canaes vaõ distribuindo, e communicando pelas entranhas da terra, nestas se inflãmão, e rarefazem de tal forma, que na pertençaõ de lugar mais dilatado chegaõ a formar todas aquellas impressões, que se experimentarão em hum, e outro terremoto» .

Quanto às horas do dia ou da noite em que um terramoto tenha mais probabilidades de ocorrer, opina o autor que estamos seguindo, sempre com o apoio de Aristóteles, que é mais provável dar-se durante a noite, de madrugada, ou de manhã «pela crescença do dia», com o Sol não descoberto, porque «a ausência do Sol, e a frialdade nocturna naõ deixam sahir para fora as exhalaçoens, que estão reclusas nas concavidades da terra:» [...].

É interessante acrescentar que alguns autores portugueses da época puseram também a hipótese de existir periodicidade para os grandes terramotos numa determinada área do globo. Anotando as datas sucessivas dos terramotos de maiores dimensões que têm sido sentidos em Lisboa nos séculos anteriores, concluíram que entre eles decorria um intervalo de tempo aproximadamente de dois séculos. Houve, de facto, em Lisboa, um terramoto muito violento no século XIV, e outro igualmente violento no século XVI. Considerando agora aquele que tinham sofrido no século XVIII, puderam admitir que o próximo, de maiores dimensões, se daria no século XX. Miguel Tibério Pedegache, um dos autores que escreveram sobre o assunto, diz, concretamente: «Persuado--me que entre os annos 1977 até 1985 haverá algum terremoto grande em Portugal».

Embora os autores portugueses setecentistas que escreveram sobre o terramoto de 1755 tivessem procurado interpretá-lo como um fenómeno natural, nenhum deles deixou de o encarar também como um castigo de Deus. Souberam esses autores distinguir as duas posições, a científica e a religiosa, de modo que uma não invalidasse a outra. As exalações sulfúreas e nitrosas, o fogo subterrâneo, as cavernas de matérias combustíveis, etc., tudo isso eram causas naturais, mas simplesmente «causas segundas», conforme lhes chamavam. Para além delas havia uma «causa primeira», que era Deus, de cuja vontade dependeria desencadear as causas segundas. Teodoro de Almeida definiu as suas duas posições pessoais com toda a nitidez escrevendo uma obra que dividiu em duas partes, a primeira em verso e a segunda em prosa. A primeira é um poema em seis cantos, em estâncias de oito versos de fraca qualidade, intitulada Lisboa destruída, em que o autor descreve o trágico acontecimento como um castigo de Deus:

Eis que Deos descarrega de repente
Sobre nós hum tal golpe, taõ pezado,
Que bem vimos ser braço omnipotente,
E por justos motivos irritado.
Toda a terra então treme, e justamente
Na presença de Deos, qu estava irado:
Estremecem do monte os fundamentos,
E perturbaõ-se os mesmos Elementos.

Na segunda parte, em prosa, intitulada Dissertação sobre a causa natural do famoso terremoto de Lisboa no [ano] de 1755, expõe o autor a teoria física que defende como interpretação do acontecimento. Nesta segunda parte, ao iniciar o texto, justifica-se perante o leitor esclarecendo-o de que «no Poema antecedente foi a nossa empreza mostrar as terríveis operações da Justiça e Omni potência Divina no funesto Terremoto»; agora, na segunda parte, «mostraremos os fenómenos, ou operações da natureza, instrumento, que continuamente serve á execução da santíssima, e adorável vontade do Ser Supremo nas obras da sua justíssima Providencia». Deste modo «ficará instruído, e contente o Filosofo, e o Christaõ».

Teodoro de Almeida inclui-se no grupo dos autores, que são a maioria, que entendem que o processo do terramoto se inicia com a determinação divina de o desencadear. As causas naturais são, para ele, causas segundas, que só actuam quando a causa primeira, que é Deus, resolve fazê-lo. Outros autores, porém, esses em menor número, concordam que Deus intervenha na eclosão dos terramotos, mas não necessariamente em todos. Aceitam a teoria das exalações sulfúreas, nitrosas, betuminosas, etc., admitindo que todos esses materiais, potencialmente preparados para a deflagração do processo, a possam promover apenas como consequência da sua situação física, sem pôr de parte a possibilidade de, num ou noutro caso, o terramoto ser provocado por expressa vontade de Deus. O médico Duarte Rebelo de Saldanha, já citado, intitula um dos capítulos da sua obra Illustraçaõ Medica, deste modo «Muitos terremotos saõ cauzados por pozitiva determinação Divina». Sublinhamos o «muitos» para pôr em evidência a posição do autor, na qual insiste, esclarecendo-a, no texto encimado pelo referido título: «Supposto que estas tremendas calamidades» [os terramotos] «tenhaõ cauzas taõ naturalissimas» [repare-se no superlativo], «e sejaõ em si uns productos naturaes; delles com tudo se serve Deus muitas vezes» [sublinhado nosso] «para o fim de moderar o maré magnum das perversas inclinações dos homens».

A referência às «perversas inclinações dos homens» revelam o motivo por que Deus teria decidido arrasar a cidade de Lisboa, sem complacência. Aí, na cidade, mais violentamente, mas também nas «diversas partes do Reino, porque todas brotavaõ com excesso as infames raízes dos vícios, de que o demónio fazia huma horrorosa colheita;» [...]. Aos quatro elementos, a terra, o ar, a água e o fogo, que destruíram a cidade, equivaliam outros tantos vícios que dominavam os seus habitantes: a vaidade, a soberba, a ira e a luxúria. «Nosso Senhor» [quis assim] «mostrar a sua indignação a este povo, que sem embargo de ser seu muito amado, e escolhido por elle para a fundação do novo Império», foi sujeito ao tremendo castigo «pelos occultos arcanos da sua providência, ou porque os seus mais escolhidos saõ por imperceptíveis Juízos do mesmo Senhor, os mais mortificados» .

Nem para todos os autores, porém, as razões da ira de Deus teriam sido as mesmas. Uma vez entre todas destoava e essa vinha de longe, da Inglaterra, de uma das personalidades mais desta cadas da cultura portuguesa do século XVIII: Francisco Xavier de Oliveira, o Cavaleiro de Oliveira como é comummente citado. As razões por que Deus castigara os portugueses com o terramoto eram, para Oliveira, bem diversas; nada tinham a ver com os quatro elementos do vício, a vaidade, a soberba, a ira ou a luxúria. Eram razões de ordem exclusivamente religiosa, relativas ao com portamento dos portugueses perante Deus, perante os Evangelhos e perante os outros homens de credos diferentes. Francisco Xavier de Oliveira apresenta-se como sabedor das preferências íntimas de Deus, e acusa os crentes portugueses de se lhe dirigirem, a Deus, precisamente do modo que Deus mais detesta . Os Portugueses, supersticiosos e idólatras, violam permanentemente a Santa Lei. À força de devoções absurdas, de sacrifícios horríveis e de orações inúteis e indignas de serem escutadas, mergulharam na superstição mais vergonhosa e na idolatria mais grosseira. O culto que em Portugal se presta às imagens dos santos, em nada se distingue do culto que os pagãos consagram aos seus ídolos.

Foram duas, segundo Oliveira, as principais razões que decidiram Deus a descarregar a sua ira sobre os Portugueses. Uma dessas razões foi não se permitir, ao povo, em Portugal, a leitura da Bíblia, proibindo a sua publicação na sua própria língua, e procurando assim esconder os desvios dos verdadeiros caminhos sagrados que a Igreja, em seu entender, não respeita. A segunda razão era a perseguição cruel exercida sobre grande parte dos Portugueses, pela Inquisição, particularmente sobre os judeus.

A Francisco Xavier de Oliveira não interessaram as causas físicas do terramoto, nem sequer se lhes refere. O seu objectivo era apenas o de combater a religião católica em defesa do protestantismo que abraçara, e o terramoto serviu-lhe de motivo para isso.

Ribeiro Sanches, nas suas Consideraçoins sobre os Terremotos, também fala em Deus, mas sente-se, por detrás das suas palavras, certo constrangimento que não o deixa pôr a questão em termos abertamente claros. «Ninguém será taô ousado sem impiedade» - diz Sanches - «que affirme, que os Terremotos naô foram já instrumentos de que se serviu a Omnipotência para castigar os homens; mas taôbem ninguém seria taõ temerário que affirmasse, que todos elles succederaõ a este fim». O período escrito tem duas partes, mas a segunda não está na exacta continuação da primeira. Sanches não quis opor-se impiamente à letra das Sagradas Escrituras onde não escasseiam os terramotos como castigo de Deus, mas admite, sem se preocupar com a impiedade que lhe está implícita, que nem todos se justifiquem por aquele motivo. Parece que a vontade de Sanches estaria em afirmar que nenhum terramoto é devido à cólera de Deus, e as palavras que se seguem inspiram este sentimento. «Hoje» — diz Sanches, na continuação imediata do período transcrito — «hum eclipse da Lua ou do Sol naõ nos atemoriza, por que sabemos a cauza;» [...]. «Se soubéssemos taôbem a cauza dos Terremotos, como a sabemos dos ventos, das trovoadas, e dos trovoins, naô teríamos, pode ser, estes notáveis movimentos da Natureza por castigo do ceo, nem tirariamos delles prognósticos para a nossa total ruina». A posição de Sanches torna-se assim clara e lúcida. Os terramotos são, todos eles, provocados por causas naturais, e é somente por ignorância de quais possam ser essas verdadeiras causas, que os interpretamos como sinais da cólera divina.

Na mesma altura em que Sanches redigia estas Consideraçoins, um alto representante da cultura portuguesa setecentista, Francisco de Pina e Melo, fazia ecoar a sua voz na capela do Hospital de Montemor-o-Velho, pronunciando um sermão que o celebrizou e em que dizia: [...] «grande delírio he este dos que chamaõ sábios em dar ás cauzas naturaes os abalos da Terra, se só quem a fez com hum aceno, a pôde mover com huma palavra».

(Comunicação apresentada à Classe de Ciências, na sessão de 29 de Outubro de 1987

 
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